
Enriquecimento ilícito: a autolavagem do funcionário público
Por Artur Gueiros, Coordenador Acadêmico do CPJM.
28/11/2020.
Na postagem anterior do Blog, vimos o quanto avançou e o quanto ainda precisa ser feito para a corrupção deixar de ser “sistêmica” no Brasil. Nesse contexto, uma das medidas que precisam ser adotadas pela nossa legislação é a criminalização do enriquecimento ilícito de funcionário público. Na verdade, a proibição do enriquecimento ilícito é um princípio geral do Direito e, como tal, gera efeitos em todo o ordenamento jurídico – nele incluído a atividade legislativa –, conferindo-lhe racionalidade e coesão.
Assim, conforme o art. 5o, inc. XLV, da Constituição da República de 1988 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm), a obrigação de reparar o dano e o confisco de bens adquiridos ilicitamente pode ser estendido aos herdeiros até o limite dos bens legados post-mortem. Portanto, apesar da Constituição proibir que a pena passe da pessoa do condenado, no que diz respeito ao patrimônio amealhado ilicitamente, o texto constitucional abre uma exceção, pois, do contrário, haveria o enriquecimento, ainda que involuntário, dos herdeiros do de cujus.
No mesmo sentido, o art. 9o, inc. VII, da Lei no 8.429/1992 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm), considera ímproba a aquisição, no exercício de função pública, de bens incompatíveis com a capacidade econômica do funcionário público: “Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente: (…) VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público.”
O próprio Código Penal (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm), ao tratar dos efeitos da condenação, no art. 91, inc. II, al. “b”, determina a “perda” ou “confisco” do bem ou valor que constitua produto ou proveito auferido pelo agente com a prática do ato criminoso. É evidente que o confisco também se aplica ao funcionário público que, por exemplo, enriquece a custa da corrupção, isto é, do recebimento de propinas, transformando a Administração Pública em um “balcão de negócios”.
Contudo, há dificuldades em se conseguir provar a prática da corrupção, o que em geral ocorre com os detentores de cargos de alto escalão. Cuidam-se de pessoas que, via de regra, arquitetam seus esquemas de corrupção na surdina – “entre quatro paredes”, como se costuma dizer –, de forma muito bem calculada, às vezes contando com assessoria de experts para dar uma roupagem de legalidade, exatamente para impedir ou dificultar a sua descoberta.
Infelizmente, não é raro constatar que certos políticos e servidores dos três Poderes, bem assim da Administração Pública direta ou indireta, seja da União, dos Estados ou dos Municípios – com uma única fonte de renda oficial –, multiplicam seus patrimônios, passando a ostentar padrões de vida de “marajás das Índias”, adquirindo imóveis de luxo, na praia ou no campo; centenas de cabeças de gado; roupas, joias e relógios de altíssimo valor; iates de luxo; automóveis importados; além de contas bancárias com mais de sete dígitos. Às vezes, certos servidores conseguem a proeza de ficar anos sem sacar nenhum tostão de suas contas, sem que isso abale o gasto cotidiano de pagamento de despesas com alimentação, vestuário, colégios dos filhos, plano de saúde, viagens internacionais de férias, e vai por aí.
Na hipótese de um desses sinais exteriores de riqueza constar em nome de um familiar ou de terceiro – por ex., uma empresa situada em um “paraíso fiscal” –, o fato poderá a ser enquadrado, se superados os percalços investigativos, como lavagem de capitais, desde que haja indicativo da prática anterior de uma infração penal. Caso não se possa comprovar o ato ilícito– o que, repita-se, ocorre com bastante frequência –, tampouco ocorra a alocação do ativo em nome de interposta pessoa, nada poderá ser feito, do ponto de vista penal, contra aquele que enriqueceu ilicitamente.
É aqui que se sente a necessidade de criminalizar o enriquecimento ilícito, isto é, o “bem-sucedido” branqueamento de dinheiro do (impune) funcionário público.
A propósito, o País assumiu compromissos internacionais de tipificar o crime de enriquecimento ilícito do funcionário público. Nesse sentido, por intermédio dos Decretos nos 4.410/2002 e 5.687/2006, foram promulgadas, respectivamente, a Convenção Interamericana contra a corrupção (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4410.htm) e a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5687.htm).
Em ambas as Convenções o Brasil “deu sua palavra” às demais Nações, no sentido de que iria criminalizar o enriquecimento sem causa de funcionário público, além de adotar outras providências para coibir a corrupção ou o suborno.
Na sequência, diversos Projetos de lei foram encaminhados ao Congresso Nacional com esse objetivo. Cite-se, como exemplo, o PL n. 5363/2005, que objetiva incluir o artigo 312-A, no Código Penal, e que se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=311439&filename=PL+5363/2005).
Na mesma esteira, no Senado Federal tramita o PLS n. 236/2012 (Novo Código Penal), que, dentre outras inovações, tipifica o ilícito em questão (https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404). Nesse sentido, dispõe o art. 277, do PLS 236:
Art. 277. Adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, utilizar ou usufruir de maneira não eventual de bens ou valores móveis ou imóveis, cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo funcionário público em razão de seu cargo ou por outro meio lícito.
Pena: Prisão, de um a cinco anos, além da perda dos bens, se o fato não constituir elemento de outro crime mais grave.
Parágrafo único. As penas serão aumentadas de metade a dois terços se a propriedade ou a posse dos bens e valores for atribuída fraudulentamente a terceiras pessoas.
Por outro lado, para aqueles que são contrários a criminalização do enriquecimento ilícito, apresentam-se, via de regra, duas objeções: 1º a violação do princípio da presunção de inocência; e 2º a inversão do ônus probatório no processo penal. Respeitadas as opiniões em contrário, tem-se que essas objeções não se sustentam. Sobre a presunção de inocência, tem-se que a imputação do cometimento do crime em questão, para além dos visíveis sinais de incremento patrimonial incompatível com os ganhos oficiais, exige do Ministério Público a prova da incongruência entre o patrimônio do servidor e suas rendas legais.
Com efeito, enriquecer – por si só – não é crime, mas essa regra não deve valer quando há o aumento patrimonial súbito e sem transparência por parte do funcionário público. E isso não afeta aquela garantia constitucional.
Com relação ao ônus da prova, é preciso deixar claro que o órgão de acusação continua com o dever processual de vincular o injustificável incremento patrimonial do servidor público aos atos por ele realizados, quer dizer, ao cargo ocupado e as funções desempenhadas pelo funcionário público.
Por exemplo, um servidor que sempre tomava um tipo de decisão, em um determinado momento, decidiu de forma exatamente contrária àquilo que sustentava. De forma aparentemente “coincidente”, naquele mesmo período ele compra um luxuoso imóvel de milhões de reais, muito acima do que poderia adquirir com os vencimentos recebidos da Administração Pública. Nessa toada, a não ser que ele tenha “achado” um tesouro escondido na Ilha de Monte Cristo – com a licença literária de Alexandre Dumas –, ou qualquer outra justificativa plausível, de algum lugar saiu o aporte financeiro para aquela compra, pois, conforme o dito popular, “dinheiro não dá em árvore”.
É certo que nesse ou em outros casos, o Ministério Público tem a obrigação de comprovar – sob o crivo do contraditório e da ampla defesa – a existência da ilícita “relação de causalidade” entre as funções desempenhadas pelo servidor público e o seu incremento patrimonial “a descoberto”.
Gostaria de ressaltar que a criminalização do enriquecimento ilícitos de funcionário público (conforme, inclusive, determinado pelo PLS 236), configurará uma norma subsidiária. O que quero dizer é que esse tipo penal somente será utilizado quando não se consiga comprovar nem a corrupção, nem a lavagem de capitais dela decorrente. Seria uma “norma de flanqueio” a se integrar ao nosso “microssistema de combate a corrupção”, pois, como visto diariamente nos jornais, há diversos escândalos de corrupção e “malas de dinheiro” que redundam em impunidade dos infratores, em razão de tecnicidades jurídicas.
Nesse contexto, ainda que não seja viável comprovar um específico ato de corrupção passiva – talvez em razão da multiplicidade de ações cotidianamente desempenhadas pelos servidores públicos – será possível, em tese, imputar o crime de enriquecimento ilícito quando o exercício do cargo ou ofício público beneficiar terceiros ou violar o interesse público, em paralelo ao incremento das fortunas de um agente estatal.
Em síntese, penso ser de todo relevante que o Congresso Nacional faça a sua parte, colmate lacunas de impunidade de infratores, contribuindo – com a promulgação do crime de enriquecimento ilícito de funcionário público – para que a corrupção deixe de ser “sistêmica” no Brasil.