Compliance como complemento das leis penais em branco?

Por Artur Gueiros, Coordenador Acadêmico do CPJM

04/11/2020.

Compliance é a soma de todos os meios de autocontrole ou autovigilância, adotados pela pessoa jurídica para que seus integrantes cumpram as regras vinculantes, com o objetivo de prevenir os riscos da atividade econômica. O compliance também compreende medidas de reação ou investigação de infrações porventura ocorridas, com a punição dos seus responsáveis e reparação de danos, bem como a comunicação dos fatos às agências externas fiscalizadoras ou persecutórias. Dentre os pilares de um programa de compliance está a implantação de um código de ética e de boa-governança, onde são estabelecidas as normas que devem ser observadas por dirigentes e empregados e, eventualmente, por terceiros com os quais se estabeleçam relações no curso da atividade empresarial. [1]

Ao gênero compliance reconhece-se a espécie criminal compliance, que vem ser o cumprimento normativo que têm por finalidade evitar a ocorrência de infrações penais (corrupção, lavagem de dinheiro, crime ambiental, concorrência desleal, assédio sexual, dentre outros). Como dito por Montaner Fernández, ainda que a gestão de riscos empresariais não seja uma atividade totalmente coincidente com o Direito Penal Econômico, a adoção cada vez mais ampla da responsabilidade penal da pessoa jurídica faz com que a dimensão do cumprimento normativo penal adquira uma maior relevância. Consequentemente, surge a expressão criminal compliance significando que, através das medidas de conformidade implementadas pela empresa, se pretende evitar a violação de normas reforçadas com sanções penais.[2]

Nesse contexto, os doutrinadores têm ressaltado que as regras e orientações contidas nos programas de compliance podem funcionar como complemento das leis penais em branco. Como se sabe, lei penal em branco ou incompleta é aquela cujo preceito primário é formulado de maneira genérica, necessitando ser integrado por outra norma, geralmente de hierarquia inferior, tais como decretos, resoluções, portarias, circulares, além de outros atos emanados da administração pública direta ou indireta, consoante a natureza do bem jurídico tutelado.[3] Considerando que as estratégias de autorregulação regulada, das quais o compliance vem a ser a figura central, correspondem uma sorte de “privatização” de funções públicas de fiscalização, controle e até mesmo da investigação e imposição de sanções, não chega a ser surpreendente tomarmos as regras de compliance como inseridas na moldura normativa correspondente às leis penais em branco, e isso vale tanto para os tipos dolosos como – talvez com maior pertinência –, para os tipos culposos, delimitando-se com maior precisão, os deveres objetivos de cuidado e as necessárias cautelas a serem observadas no desempenho das mais diversas atividades profissionais. Com isso, pode-se dizer que atualmente se franqueia um “novo capítulo” na assim chamada Teoria da Lei Penal, com novos “atores” que se somam aos clássicos produtores de normas jurídicas. A propósito, vale recordar a lição de Klaus Tiedemann no sentido de que uma das particularidades do Direito Penal Econômico reside – justamente – na adoção de técnicas especiais de tipificação, tais como as leis penais em branco.[4]

[1] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Programas de compliance e a atribuição de responsabilidade individual nos crimes empresariais. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 25. Ns. 1 a 4, jan.-dez. 2015, p. 117-118.

[2] MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel. Compliance. In Lecciones de Derecho Penal Económico y de la Empresa. Parte general y especial. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). Barcelona: Atelier, 2020, p. 99.

[3] SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo A. Direito Penal. Volume Único. São Paulo: Atlas, 2020, p. 76.

[4] TIEDEMANN, Klaus. Manual de Derecho Penal Económico. Parte General y Especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 103.