Por Guilherme Krueger, Pesquisador do CPJM.
Novos textos, quinzenalmente!

*As imagens do artista Celito Medeiros são reproduções previamente autorizadas para atividades institucionais do CPJM.

1-abril, 2022

PENSANDO E CONHECENDO XLIV
Ao apresentar sua visão panorâmica dos programas de compliance, Adan Nieto Martín identificou pelo menos três vértices convexos: ética, controles internos e ciências comportamentais. Nesta vertente comportamental, ele reconhece espaço de aplicação para a psicologia social. Quando prognosticava, assinalou nas organizações a institucionalização da conformidade legal. Aí, ele se referia às tensões entre os objetivos próprios da organização e os interesses sociais e pessoais que as enreda no seu ethos. Talvez por isso, Rafael Aguilera Gordillo proponha um novo institucionalismo que recupere as relações entre subjetividade e comportamento para o foco de análises em que se superem as teorias de sistemas que justificariam crenças recorrentes em falhas organizacionais como nexos causais para imputações penais a pessoas jurídicas. Tanto um como o outro jurista espanhol admitem persistirem sérios problemas no manejo desse recurso teórico.
Há um pressuposto implícito nessa convergência entre eles: a distinção entre instituição e organização. Na organização, a norma já é dada. Ela é um reflexo do historicamente construído. Mas, na instituição, a norma se dá. É uma questão genealógica, em termo próprio de análise institucional. Neste sentido, a norma é inflexiva em planos de tensão dos enredamentos vividos. Quando se trata de instituição em diferença à organização num mesmo ambiente de trabalho, aquela tem a ver com gêneros e visões de mundo. Nessa perspectiva de diferenciação, a norma instituinte lida com integridade em três dimensões: (1) a corporal-cognitiva-afetiva, (2) social-política e (3) ético-estética. Nas organizações, nas chamadas normas antecedentes, há três outras dimensões, (I) monetário-financeira, (II) moral e jurídica, a (III) dos riscos e oportunidades que então se apresentam no fenômeno da decisão. Saber lidar com a distinção entre instituição e organização é uma competência analítica para a compreensão adequada dos comportamentos num ambiente de trabalho.

16-março,2022

PENSANDO E CONHECENDO XLIII
Métodos quantitativos tendem a inferências de generalização pela inteligibilidade das variáveis em padrões descritos ao lidar com conjuntos imaginados (tratamento de dados); métodos qualitativos tendem, por sua vez, às inferências de particularização ou especificação de grupos sociais ao interagir com seus indivíduos (perspectivas dinâmicas) para apreender suas vivências, comportamentos, representações e linguagens. Métodos qualitativos lidam com palavra manifesta em discurso, norma, valor, símbolo e trama do convívio. Os métodos qualitativos variam conforme o modo como se estabelece o campo de pesquisa (relação pesquisador – grupo pesquisado).
O método cartográfico que permite que o grupo pesquisado seja tomado também por agentes da própria pesquisa (compartilhamento de preocupações), o foco é então “como acontece” (genealogia ou gramatologia de fenômenos – processo resultante de interações – complexidade constitutiva da especificação) conquanto menos se busque precisar “o que acontece” (análise de objetos) como um elemento distinto do processo de produção (produto de um processo encadeado). A etnografia e a cartografia se distinguem pela intensidade da imersão, ou seja, se articulam no lugar (ethos), ou seja, como os pesquisadores se implicam com os pesquisados na composição do campo de pesquisa, de modo que a convivência pesquisada é a convivência do pesquisador na relação com os pesquisados num objeto de pesquisa sempre em construção.

18-fevereiro,2022

PENSANDO E CONHECENDO XLII
 
Clint Eastwood é um cineasta e ator cuja maestria está em compor personagens em tensão entre a conformidade legal e a integridade moral. Sua dramaturgia indicia que um agente de compliance à altura de seu desafio não aplica de modo automático os protocolos, já que o prescrito para a prescruta de uma conduta moralmente íntegra pode deixar pistas de um vazio de normas a suscitar uma renormatização vislumbrada por força do vivido. Os corpos protocolares nunca totalizam a incessante invenção coletiva de dispositivos capazes de produzir sentido.
 
Uma técnica para distinguir esses dispositivos é a instrução ao sósia pelo qual se exercita as injunções sobre como deveria o sósia se portar para não reconhecido como um impostor. Esta técnica faz pensar o compliance como espaço para uma clínica do trabalho; uma ampliação dos processos investigativos entre gêneros e estilos. O gênero é um corpo imaginário interposto entre corpos físicos como campos fenomênicos e entre eles e o ambiente de trabalho. Um gênero vincula os que participam de uma situação e avaliam essa situação de uma mesma maneira. Toda atividade em gênero terá algo subentendido além do explicitado. O subentendido se conhece, se espera, se aprecia ou se teme. É o que se deve fazer graças a uma comunidade de avaliações pressupostas, sem que se tenha que se especificar, é como uma senha conhecida somente por aqueles que se integram ao gênero. O estilo, por sua vez é da ordem da singularização na potência transversal do gênero. A flexibilidade do gênero depende do estilo, uma cadência. O estilo não é contra o gênero, mas não cessam de metamorfoseá-lo nos pontos de fadiga da prática no campo de forças e de afetos de onde emergem as mudanças.

31-janeiro,2022

PENSANDO E CONHECENDO XLI
A gestão de riscos é passar por um fino gelo entre a suspeita e a confiança. Os gestores de compliance correm risco, se desinteressarem pela experiência de se ser íntegro. Isso acontece, quando impõem um modelo heteronormativo de perceber e pensar conformidades, enquanto emulam engajamento e adesão. Pertinente então se perguntar pela circulação dos diferentes sentidos que assumem os processos de compliance. Os sentidos adquiridos dependem dos modos de sentir e agir mobilizados, quando os processos são estabelecidos, porque eles podem reforçar frustrações e dificuldades; a mobilização nem sempre é compartilhamento e engajamento nem sempre é cooperação. Os vínculos de confiança envolvem criação partilhada de sentidos, pois além da colocação das questões de conformidade, há novos encontros que se estabelecem. Um plano de integridade é um plano de experiências compartilhadas nas conexões entre sujeitos e mundos. No plano da integridade, a hierarquia da especialização é subvertida.
O ethos da confiança está no plano da experiência, no manejo de vínculos, e não nos enquadramentos da deliberação baseada em cálculo de resultados. Neste sentido, toda confiança pressupõe alguma indeterminação que difere a coerência da linearidade. Neste ponto, engajamento não se reduz a uma oposição à recalcitrância. Eis que a integridade é completude dialógica que tensiona saberes e práticas. Enfim, o plano é comum, mas que haja esse coeficiente de indeterminação no espaço do diálogo – uma sintonia amodal (ritmos e velocidades) constituída de afetos e perceptos antes de uma ordem identitária ou representacional. É dessa sintonia que emerge a confiança. O desafio é identificar os dispositivos para esta sintonia, considerando que afetos não se confundem com os sentimentos, nem perceptos com percepções. Confiança não é uma questão de adesão, se não for antes uma questão de cultivo: se for baseado em termos preestabelecidos, não se dá a sintonia, pois esta só se faz com atenção às recalcitrâncias que emergem ao longo do caminho. Por isso, a confiança não se baseia em pilares, se não for para ser atento às passagens; às pistas.

18-janeiro,2022

PENSANDO E CONHECENDO XL
A tradição penal vai se transformando no mundo inteiro a galope de Mustang. Essa tradição sempre deu ênfase a um nexo causal que só pode ser descrito a partir de agentes individualmente considerados como criminosos e vítimas. Naturalmente, isso sempre dificultou a aplicação do Direito Penal em práticas de alta complexidade organizacional com resultados ultrajantes e gravíssimos contra a vida, o meio ambiente e a economia popular. Mas, o fortalecimento das práticas de compliance está diretamente relacionado aos precedentes judiciais que criminalizam condutas que são antecedentes ao dano ao bem jurídico, mas que decisivamente concorreram as condutas adotadas para esse resultado.
Sabe-se pela economia comportamental e teoria dos jogos que as nossas decisões tendem a ser mais arriscadas e moralmente lenientes com o ilícito, quando só temos em perspectiva os ganhos que a organização obterá com essas opções. Por isso, lidar com os riscos dessas opções passou a ser cogente para o gestor e condição necessária para ele se eximir da responsabilidade criminal. Não se trata de negar as condutas neutras. Mas, de efetivamente documentar que os riscos são considerados e ao menos medidas em vista à mitigação são cogitadas e encaminhamentos são inerentes às boas práticas do gestor no contexto da organização. É de responsabilidade de um gestor cuidar para que sejam identificadas e tratadas as condições e fatores que, no ambiente da organização, possam favorecer decisivamente para práticas criminosas com alto potencial de danos para a sociedade e o meio ambiente.

13-dezembro,2021

PENSANDO e CONHECENDO XXXIX
Em se tratando de compliance para a gestão de pessoas, volta-se para a conformidade legal nas áreas das relações de trabalho e seguridade social, compreendidas pela previdência, saúde e segurança do trabalho. É patente que seja comum à disciplina de Direito Penal Econômico os crimes contra a organização do trabalho.
Logo vem à mente as práticas análogas à escravidão. Mas, também envolve relações sindicais, greves, locaute, interrupção de serviços públicos essenciais, sabotagem, aliciamento para tráfico humano, frustração a direitos assegurados por leis trabalhistas. Além, é claro, daquelas atividades próprias do compliance criminal anticorrupção, concorrencial, fraude a licitações, lavagem de dinheiro e combate ao terrorismo. Afinal, investigações internas com colaboradores colocados sob suspeita e o tratamento dado aos denunciantes de práticas criminosas em proveito da organização são duas faces de uma mesma moeda.
Evidentemente são assuntos sobre os quais não é bom que o gestor de pessoas permaneça alheio. O que mais é bom que ele saiba para melhor se relacionar com o sistema de gestão de compliance de sua organização? O combate ao racismo e a homofobia, que são tipos criminais. Em todo caso promoção da diversidade e do respeito no ambiente de trabalho, o que também atrai o cuidado para com as mulheres, no limite, o combate e prevenção ao assédio sexual e o estupro. O engajamento e a participação dos colaboradores nas ações promocionais da cultura de conformidade legal e integridade moral. Por que não dizer também qualidade de vida e clima organizacional? Afinal, pode se pensar em integridade moral sem qualidade de vida? Heroísmo ou santidade não se exigem dos colaboradores. Então, integridade moral, qualidade de vida e clima organizacional andam juntas na gestão de pessoas. Tem também os aspectos pertinentes à comunicação interna do sistema de gestão de compliance. Sem falar no treinamento e capacitação, um dos seus pilares. Temas caros para o SGC também são o recrutamento de pessoas, identificação de talentos e planos de carreira.

17-novembro,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXXVIII
A inteligência artificial – a racionalidade não-substancial não pode substituir a atividade humana em sua dinâmica estímulo-resposta. Por que? A IA não vivencia a viceralidade das práticas. Só pode simular uma pelos testemunhos registrados que processa por algoritmos. É a velocidade do processamento sequencial dos registros que simula uma vivência. Então, a IA não lida para-si com a angústia, a contrição, o medo de errar e da traição, a expectativa de fracassos: tudo isso é a descoberta de si-mesmo como outro. E sem essa formação, a ética é só um verniz- esconde mais do que mostra. A ética se desprende da moral, quando se passa e não se encontra o que se espera. Quando o conhecer não é representar objetos, pois o concreto se atualiza em ruptura emocional. Identidades situacionais são modos de agir e perceber em correspondência às situações.
É verdade que processos organizacionais demandam o reconhecimento de características fixas atreladas a condutas – positivações para uma conformidade homogênea. Mas, quando há essa totalização, o viver deixa de ser neguentrópico. Porque a integridade do agir e do perceber não é dada entre aquilo que seja dado numa situação. Se a conformidade pressupõe antecipação – eis aí um paradoxo: a integridade não pode ser antecipada. Por isso, somente de um modo incompleto alcançado pelas regras preestabelecidas.
Formação é conhecer, agir e criar.

1-novembro,2021

PENSANDO E CONHECENDO XXXVII
A crença recorrente de quem lida profissionalmente com o compliance é a de poder não se identificar com hábitos indesejáveis (vícios) que são cultivados sem uma atenção cuidadosa de seus riscos. Isso o lança no desafio de estabelecer uma rotina que não separa teoria e prática. Mas, isso não é redutível a uma questão de técnica e metodologia. É aí que começa o desafio.
Se a formação de um profissional de compliance nunca acaba é porque implica em acompanhar constantemente os efeitos das práticas. Não somente nos outros, na organização para a qual trabalha. Mas, em si mesmo. Pois, o self é corpo como campo fenomênico – o aparecimento (de efeitos) para-si.

14-outubro,2021

PENSANDO E CONHECENDO XXXVI
Hoje, uma gestão correta em termos de imputação penal é aquela em que se pondera a expectativa de ganhos excelentes com a possibilidade de perdas insuportáveis. Emergiu uma qualificação para a gestão. Não basta gerar resultados positivos. Essa positividade precisa ser sustentável haja vista múltiplos sentidos sócio-ambientais plasmados em figurações transversais ou imbricadas, que são conceituadas como stakeholders: os diversos atores sociais afetados ou envolvidos nessas atividades organizadas.
Quanto à integridade moral das empresas contratantes com entes públicos, não se trata de necessidades fixas em atividades de natureza criminológica ou criminogência representadas por construções abstratas em um texto injuntivo de salvaguarda do interesse público. Tampouco se trata de negar essas construções, mas em reconhecer que também se lida com narrativas. E toda narrativa é dialógica, senão se reduz a discurso.
Integridade é plano comum em padrões imbricados e proliferantes, não tanto uma questão de processos lineares com resultados previstos para serem corretos. Transversalidade implica numa força analisadora com potencial para desestabilizar o que esteja naturalizado como certo ou errado; o que for dado num “assim mesmo”; é indiciar a iniquidade que caracterize relações de poder e dominação numa organização empresarial, sem, no entanto, pressupor que todas as empresas possuam os mesmos padrões corporativos por uma hierarquização preconcebida das diferenças. A transversalidade em toda integridade implica menos em dizer o que deve ser feito para se perguntar sobre como fazer.

1-outubro,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXXV

 compliance é um modo de agregação da integridade moral (1) e conformidade legal (2) na gestão qualificada de alguma organização.  Não é qualquer gestão, mas aquela pautada nos riscos e com foco na responsabilidade da governança.  Isso atende pelo acrônimo GRC.    Faço alusão ao compliance recorrendo aos vocábulos integridade e conformidade em vista da Sociedade Democrática (1) ou o Estado de Direito (2).  Mais do que simplesmente identificar stakeholders, trata-se de encontrar o lugar da subjetividade no meio de tanta positividade normativa em produção descrevendo e prescrevendo múltiplas variações objetivas das condutas.  Sem este encontro, o compliance, ou se torna um farisaismo laico, ou se torna patológica de transtornos psíquicos em escala epidêmica, vez que parecem esquecidas as lições de Kierkegaard sobre a angústia e a moralidade.

A cisão conceitual em integridade e conformidade faz aparecer em termos metodológicos algo como as duas faces de Janos.  Uma de trás, a conformidade legal, que aqui vou nomear como coisa em si.  E outra para frente, a coisa para si, a integridade moralA cisão remete as pessoas inseridas numa organização em compliance à pergunta existencial:  “o que doravante  fará com você mesmo de tudo que já foi feito até agora?”.  Esta pergunta jamais poderá ser feita num ambiente transparente ou expressando preocupações reputacionais da organização, ou a resposta perderá autenticidade.  Em que pese tais ressalvas, é uma pergunta eminentemente ética e a resposta é produção subjetiva, na medida em que convoca o pensamento de si-mesmo (self) como outro.

14-setembro,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXXIV

Uma vez que o compliance já esteja implantado, qual o seu devir?  Num impulso de autopreservação, os profissionais nele engajados o descrevem numa espécie de tautologia travestida de ciclos baseados nos pilares de sempre.  Se pilares são fixos para se perfazer uma passagem, apegar-se ao fixo é ir e voltar pela mesma passagem.  Qual o problema?  A degeneração, tal como Friedrich Nietzsche a conceituou – mais do mesmo só pode degenerar-se.  Aqui não há necessariamente um sentido pejorativo usual, mas estritamente filosófico de esconder mais do que mostrar aquilo que se possa chamar de dispositivo. Dispositivos não são descritíveis como representações de um objeto já realizado. São narrados, realizações; experiências de si mesmo como outro.

Aqui, é preciso pensar em termos de imaginário.  Aquilo que compartilhamos numa organização (atividade social), quando imaginamos (atividade pessoal) – as subjetividades. E estamos sempre imaginando, por mais objetivos que possamos nos sentir ao descrever algo a partir de conceitos dados.  Cornelius Castoriadis pensou o imaginário como instituinte – uma consolidação qual placa tectônica que se move sempre emergente de um movimento magmático.  Dispositivo é uma esquizoanálise (esquizo=separação/distinção) da instituição pelo imaginário. Uma genealogia do saber. Pensar o dispositivo é pensar cada um de nós como máquinas desejantes.  E o que ele aponta é para o próprio movimento magmático.  Nele, os pilares se dissolvem, restam apenas pistas para devir, uma cartografia ainda por fazer.

24-agosto,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXXIII

Qual o limite para uma gestão de riscos? Para os muito pragmáticos, é só uma equação de custos, o “apetite” por ganhos por variante. Mas, há uma questão ética subjacente que relaciona a materialidade do bem estar com a lógica de mercado. A gestão de riscos é um empoderamento sobre a produção empresarial e consumo customizado, ambos orientados para a sustentabilidade socioambiental: a satisfação responsável de todos os desejos como realização sistematizada de sonhos por metas definidas e métodos aplicados. Esse empoderamento para a sustentabilidade parece originário da mesma aspiração humana manifesta nas religiões de matriz abrâmica pela promessa de vida eterna. Uma subversão laica da presença de Deus.

Colocada a questão assim, aparece então o problema ético da transição do Homo Sapiens ao Homo Deus. Há algo de trágico nisso? Desde que os homens começaram a manejar sintaxe e a semântica, pode-se dizer que este seja o risco existencial mais recorrentemente apontado. Um desses apontamentos recorrentes aparece na alegoria romântica do vampiro gótico. No limite, a concretização sustentável do bem estar é um desejo insaciável de uma vida prolongadamente sem sofrimentos. Portanto, sem mortificação. Aí, já é morto-vivo, porque uma vida sem a mortificação se desconfigurou como vida.

03-agosto,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXXII

Byung-Chul Han apropriou as sociedades europeias medievais, modernas e contemporâneas respectivamente pelo martírio, disciplina e desempenho.  O que, por um signo, as identifica e em sincronia as diferencia como épocas?  Dor é signo.  Pelo martírio, a dor é gloriosa, purificação ou expiação.  Pela disciplina, condicionamento ou formação.  Mas para o desempenho, a dor é absurda; má per se, só pode significar disfunção.

Como signo, a dor é compositiva com a felicidade – o feliz superou a dor e finalmente descansa.  Quando a dor perde significação positiva para a automotivação e otimização performática, a felicidade se torna dispositiva: ela é coativa – um direito humano, uma máxima moral.  Aí, a liberdade deixa de se opor e resistir à vigilância.  A vigilância, por sua vez deixa de ser imposição pela disciplina; ainda que se mantenha regular.  A vigilância é liberdade regulada:  “a coação por conformidade e a pressão por consenso crescem. (….)  Em vez de debater e lutar pelos melhores argumentos, entregamo-nos à compulsão por sistema”.  (Sociedade Paliativa.  Petrópolis, RJ : Vozes, 2021, p. 10.)     Esta decadência é um perigo residual de um excesso de positividade numa cultura de conformidade.

14-julho,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXXI

Para se conhecer nexos causais, há uma interessante distinção a ser considerada entre dois tipos de proposições: as categóricas e as téticas.  As proposições categóricas expressam relações. “Eu vi algo e era azul”. As duas proposições são categóricas: na relação em que uma visão se deu, mostrou-se de algum modo, enquanto a visão e a mostra sejam aí incondicionais: Eu sempre vejo isso ou aquilo; conquanto algo seja sempre assim ou assado.  As proposições téticas, por outro lado, não lidam com relações, mas com disposições.  As constatações são téticas: “Algo azul estava diante de mim”.  As proposições categóricas apresentam um acontecimento e apontam para a noética: o aparecimento de sentido; enquanto as proposições téticas apresentem um dado e apontem para a hilética: o aparecimento de corpos.

É visão o sentido ideal (um valor sensorial de cor) que se doa ao que nos é dado pelo ambiente de cujo horizonte de indeterminação o evento percebido se nos destaca à consciência. E é nesse sentido avaliativo que há a identificação sensorial do percebido como uma totalidade – algo azul – ao que nos é dado à percepção – a noética, que é sempre parcial e dependente de uma perspectiva do próprio corpo – a hilética.  Na nuance conceitual entre assertiva noética/categórica e hilética/tética se pode compreender as hipóteses para além do estrito contexto metodológico, mas como necessidade neguentrópica do conhecimento entre a vivência pessoal (para si) ainda que amplamente compartilhada e o que seja real (para todos).

25-junho,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXX

Não pode ser confundido com um sujeito solipsista o ente universal pressuposto como alguém que crê e busca por si justificativa em suficientes evidências (dados probantes) da verdade. Exatamente por isso, a epistemologia dedica tanta importância ao testemunho. A sócio-historicidade radical do conhecimento encontra acesso epistêmico por ele.  Em particular, para o Direito Penal Econômico, uma variante do testemunho precisa ocupar um lugar central, se se quer resgatar a necessidade da epistemologia numa caracterização rigorosa do que seja verdade: o argumento de autoridade.  Ou seja, diante da proposição de alguém investido de autoridade, trata-se de avaliar as evidências que justificam crer no que ele assevera como verdade.  Mas, essas evidências não são exatamente as mesmas de uma proposição de primeira mão, ou justificativa individual.

A epistemologia social surge das evidências de credibilidade com que se justifica a crença transmitida entre pessoas no contexto coletivo ou institucional.    Não somente se crê em algo, eis que imediatamente está relacionado a crer prima facie no que propõe alguém por deferência a ela, o que torna possível partilhar conhecimento como um bem comunitário.  Mas, a confiança epistêmica é específica e intransferível a cada proposição.  Ou seja, a autoridade epistêmica advém da reconhecida capacidade em transmitir conhecimento.  Ela não se confunde com a investidura de autoridade, seja moral, militar, política, religiosa, técnica, científica ou de qualquer outra ordem. A deferência se relaciona com a investidura, mas a preponderância dessa investidura como determinante da aceitação é evidência de uma crença potencialmente injustificada em termos epistêmicos.

12-junho,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXIX

A realidade é o que aproxima a metafísica da epistemologia.  Por definição, a metafísica é o estudo dos vários problemas filosóficos sobre a realidade.  Conquanto a epistemologia seja o estudo dos vários problemas filosóficos sobre as tentativas de conhecer a realidade.  No campo dos conhecimentos empíricos, a distinção entre metafísica e a epistemologia é bem mais fácil de ser percebida, porque ela se mostra cogente numa delimitação metodológica.  A empiria descarta de sua alçada cognitiva qualquer saber que não possa ser rigorosamente certificado por alguma observação sensorial em articulação com a sistematização matemática.  Mas, isso não resta nada evidente, quando se trata da hermenêutica.

Eu posso dar voltas e mais voltas coerentes, mesmo sem nunca tocar num eixo teológico, porque em seu fundamento último emerge o mistério.  Mas em ciência, não há mistério em seu fundamento.  Há desconhecimento.  A pergunta fundamental da epistemologia não é o que se conhece do que se sabe.  Mas, é o que não se conhece do que se sabe.  Sabemos das funções lineares da geometria analítica que, no limite, nenhum dos infinitos raios tocará o eixo de um círculo, pois sempre se desconhecerá este ponto infinitesimal; mas é na existência desse limite que toda roda gira.

01-junho,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXVIII

O início de pensamento é o espanto, o assombro, o abismo, mas não a crença.  Explicar já não é pensar.  É raciocinar, o que sempre é reflexivo; não é inflexivo como o pensamento de onde emerge uma crença já como linguagem.  Criar linguagem faz parte da atividade filosófica, um desdobrar em pensamento.  A estranheza não se confunde com invalidade veritística.  A lógica contemporãnea é capaz de lidar até mesmo com a esquizoanálise de Deleuze.  Bastante entender que se trata de proposições antifundacionistas, o que o coloca dentre pensadores coerentistas.  A discussão entre coerentistas e fundacionistas rebate até hoje na regressão ao inifinito exposta por Blaise Bascal ainda no XVII.

Se não acompanhamos um texto escrito por alguém não o faz necessariamente obscuro, é preciso primeiro distinguir se ele apresenta algum fundamento, ou se não, alguma coerência. Quando se está criando linguagem, isto leva tempo e requer paciência do leitor. Pois a medida do pensamento não é dada pela nossa capacidade de acompanhar a linguagem emergente por quem está pensando.

15-maio,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXVII

Para a lógica, doxa é crença.  A crença é o  limiar entre a   lógica e o fenômeno, na qual uma estrutura inconsciente lhe dá forma inflexiva (dimensão ontológica). A crença já se mostra em linguagem, ou seja, ela emerge do inconsciente para a consciência em flexão linguística, no mais das vezes, declarativa: algo é; algo vale (dimensão ôntica). A flexão é o que correlaciona crença e conhecimento, vez que a cogitação seja sempre reflexiva de si para si diante de algo que seja ou valha. Da reflexão, a representação do acontecimento originário da crença num fato: alguém crê de algum modo em algo. Então, há um terceiro caráter diferencial entre  a crença e o conhecimento: a faticidade. A crença é relacional; o conhecimento é factual. Em suma, diferentemente do agente doxástico, o agente epistêmico lida com a derivação, reflexividade e faticidade. O agente doxástico lida com o acontecimento, a inflexão e a relação. Esses agenciamentos não se manifestam um sem o outro; da interatividade deles, emerge as imbricadas correlações entre opinar e saber.

28-abril,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXVI

Não são sempre os princípios orientados para os fins que governam o devir do Direito através da função, porque na escuta do sofrimento alheio, por uma frase que acontece, há uma eloquência dos silêncios ou esquecimentos que se manifestam numa diferença simultânea à articulação das frases.  Essa ocorrência, Lyotard chamou de diferendo. Esse silêncio é a negatividade de um argumento impossível de ser apresentado em confronto com outro argumento positivado por inexistir um juízo de isonomia aplicável aos dois argumentos.

Por isso, nenhum encadeamento de frases é sempre determinado.  Senão no horizonte de um gênero dado de discurso cuja ordem e possibilidade funcionam de acordo com o fim a atingir, eis que em cada discurso dado há uma valência comunicativa: referente e significado; destinatário e remetente. O que coloca em xeque a ideia como símbolo sintético do heterogêneo e reflexivo da correlação entre determinadas manifestações singulares.  O diferendo surge onde há falta de mediação entre gêneros discursivos por escapar-lhe as faculdades cognitivas.  O diferendo é uma ideia que não apresenta um objeto à qual se lhe atribua uma função a que se possa valer num esforço metódico de solução de conflitos.  Antes, ele é um prenúncio pela alteridade obliterada da sua realização.

Em vez de um imperativo de universalização, um imperativo de alteridade.

18-abril,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXV
O Século XX selou o fim da modernidade? Para responder esta pergunta de algum jeito, é preciso notar e correlacionar diferenças entre as propriedades do saber no sec. XIX e do XXI. Solidez e liquidez perfazem uma alusão bem conhecida de notas e correlações dos saberes moderno e contemporâneo. O que era sólido no sec. XIX, agora já está liquidado; só permanece de lá para cá aspirada uma ousadia em saber. Na solidez, as condições para saber algo eram dadas através de categorias e experiências sensíveis; na liquidez, um conceito pressupõe as mesmas condições autônomas para saber (categorização e sensibilidade), mas elas não são dadas para uma síntese; são as sínteses instituídas em linguagem – o saber não se dá; ele se institui. Então, universal que o saber se venha, mas não chegará a ser universal o que vier a se saber. Pelo menos, em termos históricos e sociais.
O conhecimento não é definido pela realidade, mas realidade se diz das condições de um conhecimento possível: o que seja real realiza-se; a realidade é movente, mas nem por isso deixa de ser cogente. O saber é constitutivamente elementar e relacional (por exemplo, identidade e diferença) numa experiência necessariamente possível de saber. Conhecimento então é reflexão desenvolvida em análise sequencial nas experiências factuais e ativas, mas as asserções dela em linguagem não prescindem das interações associativas e diacríticas próprias na percepção de sintomas, pois elas próprias também são experiências.

01-abril,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXIV

Qualquer ciência social, inclusive o Direito, tem esses aspectos a serem considerados a respeito do seu conhecimento, mesmo tendo a disposição uma massa de dados:  o alcance limitado no manejo de aparatos de observação experimental para a refutação das hipóteses, as covariações dos fenômenos em diferentes campos do conhecimento (como a psicologia, a tecnologia e a etnologia) para uma parametrização eficaz dos comportamentos e a circularidade com que o conhecimento adquirido possivelmente impacta as próprias condicionantes do comportamento (o conhecimento é provavelmente um dos condicionantes), bem como impacta a formulação de inferências e  conclusões com as descontinuidades reflexas dos diferentes marcos teóricos adotados, o que impossibilita uma definição simples de progresso para o estado das artes.

A teoria dos jogos teve relevância nos últimos anos para a produção de conhecimento em várias das ciências sociais como a economia por ter se apresentado como um paradigma eficaz para lidar com esses diferentes aspectos.  Com a ressalva de que paradigma não se confunde com dogmas epistemológicos: não é corpo de proposições teóricas, ou protocolos procedimentais.  Um paradigma é o modo próprio de uma comunidade de pesquisadores compartilhar entre si termos de suas interpretações teóricas e orientações práticas de estudo e pesquisa.  Um paradigma diz das opiniões (crenças) compartilhadas que se busca justificar com a formulação de hipóteses afins e com as maneiras recorrentes com que lidam com essas hipóteses.  E neste sentido que se pode dizer que um paradigma seja estrutural do conhecimento.

21-março,2021

PENSANDO & CONHECENDO XXIII

O slogan Arbeit macht frei (o trabalho liberta) nos remete à memória dos campos nazistas de concentração e extermínio. Mas, em Buchenwald, havia inscrito outro slogan: Jedem das seine (A cada um, o seu). Este slogan permite explicitar melhor a hermenêutica em atribuir, ou não, às Leis Raciais de Nuremberg condição de ser Direito.

Na organização dos cursos de ação, pode-se falar de habitats em que estão estruturadas e determinadas as funções estatais e do modo como os agentes públicos imbuídos de realizar essas funções raciocinam ou devem raciocinar. Uma instituição moral não só organiza um curso de ação da vida individual ou social das pessoas, mas também impacta as ações estatais de modos variados. As variações têm a ver com os poderes e funções estatais. Mas, se é possível pôr em xeque uma argumentação jurídica que determine o uso do predicado justo ao correlacioná-la a padrões morais, é discutível se a moralidade toma parte da essência do Direito. Mas, a necessidade do bem jurídico como pressuposto de uma argumentação implicará no corolário em que a moralidade tome parte da essência do Direito.

06-março,2021

PENSANDO E CONHECENDO XXII

Desafios contextuais da epistemologia social atualizam preocupações do Círculo de Viena, um grupo de intelectuais desconfiados do impacto gerado no imaginário alemão pelo Stürm und Drang (Ímpeto e Tempestade), um movimento estético que aconteceu enquanto era amadurecida a unificação nacional da Alemanha. A confraria vienense foi formada num momento imediatamente anterior à anexação da Áustria ao III Reich. Esses intelectuais estavam particularmente interessados em lógica e linguagem para a normatização do conhecimento. A ênfase dada pelos vienenses foi uma resposta à relativização da verdade ôntica frente à vontade do sujeito histórico que encontrou sua epítome metafísica no Espírito de Hegel. Neste sentido, se pode compreender que a motivação de Wittgenstein escrever seu Tratado Lógico Filosófico tenha sido por ele afirmada como sendo eminentemente ética.

A precipitação da Anschluss dispersou os amigos forçados pelas circunstâncias à imigração. O ingresso de vários deles em universidades inglesas e norte-americanas foi uma inflexão para a filosofia anglófona contemporânea, em particular a lógica- analítica.

19-fevereiro,2021

PENSANDO E CONHECENDO XXI

O Direito Penal Econômico lida com uma correlação epistêmica entre a empiria própria do conhecimento econômico e a dogmática do Direito, cuja interpretação é eminentemente hermenêutica. Essa correlação é fulcro das presunções induzidas acerca das condutas objetivadas e referenciadas num centro de imputação. As induções aqui se referem ao caráter daquilo que seja transposto à moldura fático-probatória de caso com implicação penal de seara econômica.

Há nexos conceituais entre o Direito e a Economia no atual estado das artes de ambas ciências. Os nexos mais evidentes são o risco e a função numa perspectiva do comportamento em Economia para a conduta no Direito. A afinidade entre comportamento e conduta é epistêmica. Isso implica em admitir que seja enganoso supô-la tão óbvia a ponto da desnecessidade de se dedicar atenção numa reflexão mais cuidadosa sobre ela. Essa atenção aqui previne argumentos falaciosos inadvertidamente empregados numa justificação. Evidência não é sinônimo de obviedade.

07-fevereiro,2021

PENSANDO E CONHECENDO XX

Um mercado é por excelência lugar onde muitas circunstâncias pesam. Daí se tratar em linguagem jornalística os mercados como que dotados de características próprias da personalidade mítica e que os analistas de mercado sejam tratados como uma versão moderna dos antigos oráculos… mercados têm humor, crenças, expectativas, reações dia a dia; têm algo a dizer sobre decisões de governo, acidentes, catástrofes e guerras. E, tal como nas estruturas míticas, o mensageiro da vontade dos deuses é também um mentiroso. Um exemplo clássico é o de Mercurio (Hermes): mensageiro, é um deus ardiloso e sagaz, que por isso mesmo é patrono tanto dos comerciantes como dos ladrões .

O nome Mercurio tem o seu radical latino em merx, que alude ao objeto de mercado, cobiçado tanto por uns (licitamente) como outros (ilicitamente). Tardiamente, é ele quem (Hermes Trismegisto) ensinou a palavra escrita aos homens. O leitor é um intérprete e a sua interpretação pode ser enganosa sobre o que acontece. E de Hermes, a hermenêutica, sempre uma promessa de que intérprete se prevenirá do engano na leitura. O signo de Hermes mostra uma dimensão arquetípica para se compreender melhor tanto pelo Direito Concorrencial, mas, sobretudo, pelo Direito Penal, o que acontece com relação às inferências dedutivas para a formação de juízo sobre uma conduta inventiva no mercado.

31-janeiro,2021

PENSANDO & CONHECENDO XIX

Há severos questionamentos sobre a validade de se considerar um sujeito abstrato por pressuposto para a conceituações de crença, de conhecimento, de dados probatórios, de razões ou de justificação, em termos exclusivamente conceituais, apoiando-se em experimentos de pensamento e em contra-exemplos, em intuições pré-teóricas ou semânticas. Isso tem obliterado a relevância da epistemologia (teorias de justificação dos conhecimentos) ao realçar a importância da história, biologia, sociologia ou psicologia da cognição. O problema dessa tendência é que ela dilui o sentido de verdade no propósito. Como propósitos podem ser conflitantes, a noção de verdade teve enfraquecido seu caráter socialmente coesivo, perdida que resta numa geleia conceitual que afeta inclusive o Direito.

No entanto, este ente universal pressuposto na epistemologia como alguém que crê e busca por si justificativa não pode ser confundido com um sujeito atemporal. Exatamente por isso, a epistemologia dedica tanta importância ao testemunho. A sócio-historicidade radical do conhecimento encontra acesso na epistemologia por este conceito. Em particular, para o Direito Penal Econômico, uma variante do testemunho precisa ocupar um lugar central, se se quer resgatar a importância da epistemologia na caracterização rigorosa do que seja verdade: o argumento de autoridade.

15-janeiro,2021

PENSANDO & CONHECENDO XVIII

Oliver Sacks, falecido em 2015, foi um neurologista notável desde os anos 70 por suas explorações das interfaces neurais com a psiquiatria. Ele distinguia o discurso físico (consistente por métodos sequenciais e quantitativos) do discurso fenomênico, constitutivo do mundo. Afirmou que mundo prescindia de “correlatos” neurológicos. Aliás, as considerações neurológicas ao contar a história de um ser humano, sua narrativa, passagens e cenas de sua vida, poderiam ser absurdas e mesmo insultantes. Nem sempre, ressalva sua, porque a vida de alguém pode ser transformada por distúrbio orgânico, situação em que a correlação fisiológica se mostra necessária à narrativa. Em jogo estão as relações éticas entre as funcionalidades neurais e a liberdade humana sobre as quais produziu extensa literatura ensaística baseada nas suas experiências na clínica médica: “É esse poder narrativo ou simbólico que proporciona um senso do mundo – uma realidade concreta na forma imaginativa de símbolos e histórias – quando o pensamento abstrato [atitude abstrato-categórica ou pensamento proposicional] nada pode fornecer”.

O que Sacks percebeu pela medicina exercida foi uma questão epistemológica fundamental no limiar entre a empiria e a hermenêutica. Está próxima daquela que desafia o Direito Penal Econômico, conquanto a ciência econômica seja eminentemente empírica e a ciência jurídica, dogmática.

06-dezembro,2020

PENSANDO & CONHECENDO XVII

Qual é a diferença entre um acordo de cooperação horizontal análogo a um ato de concentração e, portanto, presumidamente lícito; e um cartel, uma conduta ilícita por objeto que, no Brasil, tipificado como crime? Nem sempre a resposta será fácil, pois comporta uma série de nuances que precisam ser analisados empiricamente com o uso de métodos próprios do estatuto científico da Economia.

Talvez se possa dizer pitoresco no Direito Concorrencial como a sua teorização parte da regularidade e generalidade, enquanto se constate que a análise antitruste recorrentemente chega a soluções ad hoc. Ou seja, os juízos da autoridade administrativa sancionadora se exaurem com variações significativas caso a caso. Mesmo assim, é possível emprestar coerência entre a regularidade do modelo teórico e a prática casuística da autoridade antitruste. Bastante observar que seus pronunciamentos se voltam a situações que, justamente por serem excepcionais, marginais, atraem a sua alçada. Trocando em miúdo, trata-se de situações excepcionais com as quais a autoridade antitruste reafirma a validade dos pressupostos econômicos do Direito Concorrencial.

25-novembro,2020

PENSANDO & CONHECENDO XVI

A necessidade de uma resposta a questões cruciais para nossas decisões diárias no contexto da ordem econômica e social contemporânea torna imprescindível o apelo à autoridade dos especialistas, o que impõe uma validade pressuposta de outras investigações que não podemos verificar por razões de competência e/ou tempo. Ainda que se possa examinar o rigor epistemológico de qualquer investigação especializada, não há como fazê-lo ordinariamente, senão por alguma amostra selecionada para verificação das premissas assumidas e métodos adotados em pesquisas avançadas. Ainda que se realize uma verificação em amostragem, há uma interação nodal ou rizomática de testemunhos encadeados que torna incontornável a dependência epistêmica e assimetria na justificação de crenças cuja verdade seja provável.

A justificação requer uma avaliação racional da especialização: como reconhecer um especialista em um determinado domínio técnico como autoridade fiável em um tópico? As objeções às diferentes possibilidades teóricas no âmbito da epistemologia surgem em todas as direções e, ao que parece no atual estado das artes, o debate a respeito da prevalência de uma alternativa teórica sobre outra resta insuperável. O que soa paradoxal em se tratando de lógica (se considerada apenas sua versão clássica de certificação da verdade). Mas, essa impossibilidade de superação torna particularmente crítico para o Direito Penal Econômico o exame da qualidade epistêmica das crenças envolvidas. Aí, a alética se torna uma competência. A alética é o campo de estudos contemporâneos sobre lógica das correlações entre necessidade, contingência, possibilidade ou impossibilidade.

09-novembro,2020

PENSANDO E CONHECENDO XV

Crimes de perigo, bens jurídicos coletivos e criminal compliance são expressões que surgem face os perigos imaginários de um mundo vertiginoso. A partir da sua potência autônoma proclamada e de seu desejo por ela, o ser humano abismou-se ao criar padrões materiais para seu bem estar tanto quanto em gerar sofrimento e medo instantâneos e em larga escala. O contexto em que se dá este material apresenta-se num horizonte temporal que retroage aos anos 70, quando a volatilidade e a incerteza foram percebidas como dramáticas em séries estatísticas que vinham regredindo à média sem que ela se movimentasse sensivelmente para os agentes econômicos desde o fim da II Guerra Mundial, particularmente para agentes norte-americanos e europeus: preços de produtos primários, taxas de inflação, câmbio, juros e títulos públicos. Algo inteiramente novo também acontecia: uma circulação de informações com impressões impensáveis anteriormente através das redes de comunicação com transmissão de imagens via satélite. A derrota no Vietnã, a explosão dos preços de petróleo, o escândalo de Watergate, os reféns de Teerã produziram impressões da noite para o dia em milhões de pessoas que não estavam acostumadas a esse bombardeio televisivo nem analistas profissionais estavam preparados para responder sobre esses fenômenos de massa.

Neste contexto, o paradoxo de Ellsberg ganhou relevância como teoria: os agentes econômicos tendem a decidir derivados dos padrões de racionalidade esperada em situações de incerteza. Daniel Ellsberg, que por sua formação militar era familiarizado com jogos de guerra, fez uma distinção importante entre risco e incerteza: A primeira lida com a probabilidade, pois seu conhecimento pode ser baseado em séries históricas; a segunda lida com ambiguidade, pois se desconhece o que seja provável por ausência de padrão serial possível. Por aversão à ambiguidade, os agentes econômicos tendem a assumir posições mais arriscadas do que seria racionalmente esperado deles. Ou seja, prudência é uma virtude que escasseia em situações de incerteza. Esse paradoxo pode ser ilustrado da seguinte maneira: exaltamos inovações tecnológicas disruptivas como manifestações da genialidade e progresso humanos ao mesmo tempo em que as incertezas inerentes às disrupções nos leva a tomar decisões disfuncionais por aversão à ambiguidade. Ellsberg evidenciou empiricamente que a ambiguidade faz disparar os custos de risco nas transações.

26-outubro,2020

PENSANDO & CONHECENDO XIV

Em 2013, Richard Thaler foi laureado com o prêmio Nobel por sua contribuição ao estudo da economia comportamental. Este campo de estudos é transdisciplinar à psicologia e, entre outras coisas, estuda como a incerteza influencia decisões dos agentes econômicos. O reconhecimento da racionalidade limitada foi uma contribuição da economia comportamental para os custos de transação. Uma das implicações do conceito é a inversão de tendência pressuposta desde a economia clássica que a variância do mercado tendia necessariamente ao equilíbrio. Isso, porque a volatilidade do mercado não tende necessariamente ao retorno do equilíbrio, mas também à maior volatilidade, conquanto permaneça da escola clássica o ideal de que seja não só possível como necessário que a economia volte à normalidade. Que matematicamente corresponde a uma curva em forma de sino (curva de Gauss). A confluência da psicologia e da lógica na economia indica o desafio permanente dos economistas: encontrar “novos normais”.

A racionalidade limitada dos agentes econômicos (cuja ausência de invariância lógica em suas decisões frustra a idealizada normalidade racional da Economia) responde em grande medida para o aparecimento do Direito Regulatório e pela expansão tanto do Direito Administrativo Sancionador como do Direito Penal Econômico. Para isso, foi preciso encontrar conceitos centrais e comuns tanto na linguagem da Economia e como do Direito para argumentações sistematicamente coerentes. Estes conceitos foram função e risco. A limitação da racionalidade dos agentes econômicos encontra seu fundo na incerteza. E esta incerteza se manifesta empiricamente no aparecimento de externalidades que alterem abruptamente a percepção do risco pelos agentes. A função do Direito Regulatório é modular estes aparecimentos, normatizando as novidades para que se tornem compatíveis com a normalidade. De certo modo, o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal Econômico condicionam a liberdade dos agentes econômicos para que não importe num grau insuportável de ambiguidade.

08-outubro,2020

PENSANDO & CONHECENDO XIII

Sabemos que a probabilística foi iniciada na troca de correspondências entre Blaise Pascal e Pierre de Fermat em meados do sec. XVII. Eles tentavam solucionar o desafio de Paccioli (professor de Leonardo da Vinci em matemática): “A e B jogam dados honestamente. Eles combinaram que quem vencesse 6 partidas primeiro levaria todo o dinheiro apostado. Mas, o jogo teve de terminar, quando A só havia vencido 5 rodadas e B, 3. Como o dinheiro deve ser dividido?”. Para Pascal e Fermat, não se tratava só de um enigma aritmético. Mas, também uma questão moral. Pascal foi teólogo e Fermat era advogado. Concordavam que a volta ao status quo ante (devolver as apostas) não era o mais correto, pois seria ignorar uma combinação proposta entre eles. Respeitar a combinação era a motivação moral e aí lançaram as bases da análise combinatória, com a qual estabeleceram uma regra racional para justa distribuição derivada entre o combinado e o atualizado. Demoraria ainda bem mais de um século para que essa noção tivesse aplicação pública na ordem econômica, mas Fermat e Pascal intuíram, juntos, algo essencial na gestão do risco: a sua ambiguidade entre cálculo e a motivação. O cálculo esclarece a regra, mas é motivação o que a justifica.

A gestão do risco nasceu de um problema hermenêutico. Sendo Direito e Teologia disciplinas essencialmente dogmáticas, é hermenêutica a base epistemológica para a abordagem de ambos. O diálogo entre ambas as disciplinas se mostrou fértil. Mas, as guerras religiosas e as revoluções sociais ensejaram o imaginário atual de que a Teologia e o Direito sejam campos totalmente separados pelo Estado laico. Em que pese a história do risco testemunhar a fertilidade intelectual do diálogo entre ambas.

26-setembro,2020

PENSANDO E CONHECENDO XII

Autoridade para o compliance officer é a capacidade de convencimento, mobilização e comprometimento em práticas que logram obter a mimese entre realização empresarial e conformação legal e moral. Sendo o compliance essencialmente um exercício sistemático de normatividade (autorregulação regulada), há (in)fusão (mimese) de instrução (injuntiva e prescritiva) numa narrativa (a trajetória memorável de uma atividade humana num enredamento dos acontecimentos para ser-o-que-tiver-que-ser ao fim e ao cabo). O sistema de gestão de compliance produz uma narrativa sistematicamente documentada. Isso porque existe uma diferença lógica entre mundos possíveis, que são vários [multiverso]; e mundo atual, que é universal. Todo perigo abre o mundo para diferentes narrativas possíveis.

Este é o desafio do compliance: se, num risco, há diferentes narrativas possíveis para a mesma imputação que seja estigmatizante, como estabilizar a reputação da organização em sua trajetória imaginária? Compliance é antecipar-se à sanção já antecipada. Ao executar rotinas protocolares, documenta-se sistematicamente uma narrativa cujo enredo seja o curso imaginário dos perigos enfrentados e superações logradas. Este curso é concebido na política instituída pela alta administração e manifesto em discurso e objetivos institucionais. E este curso resgata a atualidade para a imputação. É desse modo (linguístico e historiográfico) que o compliance protege a reputação da organização. Narrativa documentada é um acervo de evidências historiográficas que se prestam para testar hipóteses de conduta moral ou legalmente conforme.

14-setembro,2020

PENSANDO E CONHECENDO XI

Guilherme de Ockham foi um estudioso da lógica que viveu no Sec. XIV e faleceu da peste negra. Um dos mais eficientes testes de lógica foi criado por ele e, por isso, é conhecido como navalha de Ockham. Sua obra é precursora do empirismo moderno, mas ele também foi influente na política pelo resgate que fez da distinção fundamental entre potestade e autoridade; distinção esta baseada no Duo Sunt (“Há Dois”) – uma carta datada do sec. V que versava sobre a relação e as respectivas competências na coexistência complementar, pacífica e colaborativa entre um Papa e um Imperador. Para Ockham, por princípio moral, maior será a autoridade quanto menor for a necessidade de enforcement para afirmá-la.

Uma aplicação do aprendido com Ockham? A função de compliance é a de catalisação. A catálise é uma aceleração de mudança material pela presença de um agente identificável nessa modificação. Ela se coloca ao lado das demais funções e em favor do propósito comum da organização. Em grande medida, o sucesso sustentável da equipe de compliance não é dado pelo poder que cumula da governança, mas pela autoridade que adquire por entre a média gerência e stakeholders. A autoridade aqui se efetiva como capacidade de convencimento, mobilização e comprometimento em práticas que logram obter a mimese entre realização empresarial e conformação legal e moral.

31-agosto,2020

PENSANDO E CONHECENDO X

Sabemos que a probabilística foi esboçada a propósito do jogo de dados numa troca de cartas entre Blaise Pascal, um matemático e Pierre de Fermat, um advogado, lá pelo meio do sec. XVII. Olhando mais de perto o interesse de Pascal pela incerteza, vamos notar que chegava ao nível da obsessão. Ou do acabrunhamento, se preferirem, para ser mais fiel ao que ele próprio chamou de effroi. Ele soube colocar em xeque a mais famosa proposição apodítica da razão. Pascal notou que, fora da geometria (foi aí que enganchou Descartes), uma demonstração discursiva de qualquer termo (na medida em que é, ela própria, composta por outros termos) também necessita de outras definições e demonstrações pressupostas para defini-lo e demonstrá-lo totalmente. Há uma regressão ao infinito imbricada nas próprias proposições, o que impossibilita um sobrevoo da razão por sobre um conceito evidenciado de infinito, eis que isso levaria a um acúmulo de complexidade da justificação da crença até o limite da sua totalização, que aí escapa do conhecimento: já se mostra inacessível por si mesmo.

Essa questão levou necessariamente (afinal, estamos lidando com pessoas que viviam no sec. XVII) a uma controvérsia acerca da relação entre razão e fé com todas as perigosíssimas implicações morais e de integridade física que tais especulações poderiam levar. Saiu-se da saia justa com uma solução tão genial quanto simples. A solução é conhecida como a aposta de Pascal. Ele formulou 3 proposições logicamente possíveis: [1] creio que Deus exista; [2] não creio que Ele exista; [3] não me decido que exista ou não exista. Aparentemente, a regressão pascalina ao infinito levaria à adoção da proposição 3, mas Pascal a refuta. Ele examina as consequências possíveis. [1] Se Deus existe e eu creio Nele, o ganho é significativo; [2] Se Ele existe e não creio, a perda é significativa; se Ele não existe e eu creio, a perda é insignificante [3]; Se Ele não existe e tampouco creio, o ganho também é insignificante. Há na aposta de Pascal uma profunda repercussão ética para a gestão de riscos no que se refere à responsabilidade objetiva numa tomada de decisão e racional para o enforcement do Direito Penal.

15-agosto,2020

PENSANDO E CONHECENDO IX

Nos crimes de perigo abstrato em Direito Penal Econômico, é preciso ter muito cuidado com o manejo dos argumentos de autoridade. Sendo o Direito uma ciência dogmática, os argumentos de autoridade não trazem os mesmos perigos de falácia que podem carregar para as ciências empíricas, como é a Economia. Mas, muito mais perigo haverá em carregar argumentos de autoridade em Economia para o Direito. A primeira noção a ser considerada é a complexidade. Crimes econômicos podem assumir alta complexidade. E quanto mais complexo seja o conhecimento, mais um especialista estará baseado em outros num alongamento na cadeia de argumentos de autoridade. Não há exatamente um problema aqui. Afinal, conhecimento não combina com iconoclastia. Uma fonte substancial de conhecimento de alguém é outrem.

Por outro lado, em ciência empírica, é preciso admitir que todo argumento de autoridade é um acesso indireto a provas e seu manejo estabelece uma cadeia probatória. Em se tratando de economia e finanças, há que se ter prudência no manejo desse recurso no processo penal. Pois ele se dá fora do ambiente acadêmico e, portanto, por lócus, já descontextualizará uma proposição. No ambiente acadêmico haverá mais pessoas (pesquisadores) com o acesso direto às provas e mais gente em condições de perceber eventuais problemas metodológicos a serem considerados na delimitação adequada das conclusões a que se chegou um especialista. Isso é particularmente escorregadio em processo penal, porque um argumento de autoridade em economia e finanças estará sendo manejado por quem é autoridade em Direito. Autoridade é epistemologicamente específica, mas não é transferível por sua citação. A prudência cognitiva se manifestará em responder a si honestamente duas perguntas: “o que sei do que ela sabe?” e “sei como ela soube o que sabe?”.

31-julho,2020

PENSANDO E CONHECENDO VIII

As relações entre perigo e risco são limites entre mundo atual e mundos possíveis para o Direito Penal Econômico. A existência desses limites é aquilo que impede a unificação hermenêutica numa totalização metafísica do seu significado (ressalvada a presença de uma pessoa divina como necessidade). Nas estritas condições de laicidade, as relações entre perigo e risco sempre serão controversas para estigmatizar alguém. E isso é um problema ético incontornável para quem esteja destinado a operar com o DPE.

Tudo é possível. Esta frase certamente faz algum sentido. Mas, se tudo for possível, nada é no horizonte de indistinção de todo ser num tudo. Entretanto, algo ainda permanece para a significação: a ordem sintagmática da frase. Essa ordem é lógica. Tudo ser possível, isso é uma questão de lógica gramatical no limite do fenômeno, que é o aparecimento de algo ser diferente do horizonte de indistinção.

Uma roda pode ter infinitos raios. Esta frase também faz sentido. Mas, pela infinitude possível, “o” raio nunca toca “o” arco. E é exatamente a partir desse limite lógico que ocorre um fenômeno: uma roda gira.

Um limite é ambíguo para o conhecimento. Esta ambiguidade é “o” limite. Irmã desta ambiguidade é o sutil rastro de incerteza em uma certeza. Afinal, qual é “a” certeza que todo alguém possa ter do quê? Inexistir uma resposta que totalize a realidade é angustiante para uma tomada de decisão crucial. A angústia aí constitui o fundamento ético primordial para o Direito Penal Econômico; fundamento este que polariza sua epistemologia criminológica.

19-julho,2020

PENSANDO E CONHECENDO VII

Filósofos costumam escrever, escrever… Husserl aprendeu estenografia só para registrar mais rápido seus pensamentos. Entre filósofos mais conhecidos, sempre há textos menos comentados, estudados do que outros que são considerados marcos para o pensamento de uma época. Mas, às vezes, estes textos meio que deixados de lado contém registros muito importantes sobre seu pensamento. Nem sempre é um detalhe que só desperte interesse na exumação acadêmica de um personagem histórico. Às vezes, estes textos são desconcertantes. Isso acontece com A religião nos limites da simples razão, de Kant.

Com uma honestidade intelectual incomum, Kant confessa nesse livro que debalde seus monumentais esforços de pensamento, a crítica da razão prática não lhe parecia hábil em sondar o que possa ser chamado de mal radical. Há muitas expressões e linguagens que insinuam essa incapacidade humana de se conciliar final e permanentemente com a sua natureza. Pecado original, alma imoral, pulsão de morte, teatro da crueldade, a vida como ela é…

O que isso pode dizer sobre compliance? A conduta de alguém nunca será tão reta quanto um raciocínio puder lhe propor como dever. Como Kierkegaard soube descrever, só lhe restará o desespero. Algo que foi comoventemente retratado pelo suicídio do Inspetor Javert em Os Miseráveis, de Victor Hugo. Uma política de compliance que afinal proponha e exalte uma retidão de conduta como meta sua provavelmente irá esconder muito mais do que mostrar. Vai propor um programa que já nasce destinado ao fracasso, simplesmente porque ofusca a humanidade com palavras esclarecidas. Uma coisa é estabelecer protocolos de segurança para que se mantenham aviões no ar conforme o programado. Outra coisa muito diferente são protocolos que mantenham uma ética no ar por uma questão de reputação. Efetivamente, só sustentam moralismos.

04-julho,2020

PENSANDO E CONHECENDO VI

Uma norma vigente é sempre um registro memorável para uma situação presente. Os contextos em que uma norma foi instituída e que ela é aplicada se encontram de alguma forma passível de conhecimento: o dogma – o que se crê realmente adequado por norma. Por mais esclarecida, fundamentada, racional, pragmática ou consequente seja uma interpretação do Direito aplicável a uma situação, ela será dogmática. O mesmo acontece com as religiões, sobretudo as instituídas na sacralização de um texto. Um memorial cuja interpretação institui um encontro real em circunstâncias presentes. Uma fé religiosa só pode ser vívida, se trouxer consigo crença de vigência da verdade da qual seja portadora para todos.

Mas, como pode uma crença religiosa conviver com outras sem que estas não sejam automaticamente interpretadas como mentirosas ou maliciosas; e, ao mesmo tempo, tampouco isso traia a própria certeza da verdade absoluta cuja fé faça crer que realmente seja a existência? A mais ampla possibilidade implícita num mistério. No mistério, a certeza absoluta e a possibilidade relativa não são excludentes; são dialógicas. E se a afetividade ou a criatividade humana forem locandas que afinal ninguém esquadrinha por completo, para o Direito Penal (por mais que se realize a objetividade das condutas por dogma jurídico e que advenham certezas das evidências observadas conforme algum critério cogente de padronização) admissíveis são necessariamente mais amplas possibilidades relativas a elas: o rigor na formulação de hipóteses se torna então ainda mais importante para a relação existente entre conhecimento e justiça.

22-junho,2020

PENSANDO E CONHECENDO V

As virtudes cognitivas não se confundem com aquelas morais amplamente sistematizadas na escolástica medieval desde a Ética a Nicômaco. No entanto, a expressão virtude alude a dois fundamentos fenomenológicos: o hábito e a polaridade (a declinação cognitiva norteada pelo conhecimento; significando ele um vetor finalísitico ao se mostrar “veste racional” da verdade como um valor, isto é, um absoluto ideal e material que se suporta num conhecimento). Nem o hábito nem essa polaridade se voltam às possibilidades da ação prática como a honestidade, mas às faculdades cognitivas reflexivas sobre as significações ônticas advindas da experiência sensorial, mnemônica, perceptiva, epifântica ou apofântica. Reflexa é a consciência da confiabilidade do contato cognitivo com a realidade que se manifesta nas relações entre (1) experiências sensorial, sensitiva e racional, (2) faculdades ou disposições cognitivas reflexivas e (3) significações ônticas.

Implica em dizer que a virtude cognitiva promove (no sentido de tendência ou de inclinação) na concepção veritística. As virtudes são correlacionadas a um conjunto de condições situacionais. Ou seja, uma virtude só se mostra num contexto narrativo a que alude o hábito. Mas este contexto narrativo também supõe alguma declinação cognitiva no próprio acontecimento do sujeito formar uma crença qualquer. Teorias da justificação epistêmica propositivas das virtudes estão focadas na crença e possuem paralelos com as teorias morais focadas no ato, sendo o deontologismo epistêmico o paralelo das teorias morais deontológicas e o confiabilismo o paralelo das teorias utilitaristas. Isso significa que há um aspecto motivacional razoável para a aquisição do conhecimento. Propõe que o ato intelectualmente virtuoso seja determinante para que alguma crença verdadeira seja justificadamente um conhecimento. Poder-se-ia dizer que esta proposição ascética do conhecimento seja rigorosa demais para boa parte da vida cotidiana, porém talvez ela possa ser especialmente aplicável para o Direito Penal e o Administrativo Sancionador, quando se trata da defesa da concorrência e da cooperação na ordem econômica. E para isso há uma plêiade de normas deontológicas juridicamente positivadas e que permeiam a economia dos custos de transação, lócus das decisões com implicações jurídicas de ordem econômica e social; decisões então marcadas pela responsabilidade objetiva na gestão dos riscos.

5-junho,2020

PENSANDO E CONHECENDO IV

Os nexos lógicos entre mundo atual e mundos possíveis só estabelecem condições de verdade, não a verdade sobre algum perigo. Por isso, debalde certezas que vão sendo historicamente solidificadas, o devir logra recorrentemente indicar que temores sejam infundados e punições severas antes aplicadas com base nesses temores se mostrem depois injustas ante uma mudança de paradigma que vier a ocorrer no conhecimento humano. O conhecimento humano não é linearmente cumulativo, eis que se move em cumulações entre saltos e rupturas inimagináveis até que ocorram: a ciência não prescinde do toque de Mnemosine com seus dedos róseos na aurora do pensamento. De novo e de novo. Surge daí uma preocupação doutrinária sobre a adequação aos valores positivados constitucionalmente e de controle face eventual expansão desmedida do Direito Penal. Trata-se de uma prudência cognitiva, com a qual presunções do injusto em tipificação sempre sejam passíveis de controvérsia. Para além de uma demonstração dedutiva de uma subsunção formal para a aplicação da norma no mundo dos fatos, a refutabilidade de todo saber presumido precisa ser injetada pelo intérprete no próprio tipo penal, pois além de ser uma questão de política criminal, trata-se de um problema epistemológico para qualquer ciência positiva, problema este que o Direito não está imune de enfrentar, sem o que resvalaria num sentido teratológico já antevisto no brocardo latino summum ius, summa iniuria.

21-maio,2020

PENSANDO E CONHECENDO III
A valência normal e normativa é promovida pelo Estado em ordenação constitutiva tanto por ações programadas de incentivo, aplicação, regulação, controle, acompanhamento, mediação e composição, como por medidas dissuasórias preventivas ou corretivas da desordem. Um bem jurídico é um polo principiológico que dá significação à diferença do mal na ordem constitucional. Pelos bens que suporta, a ordem econômica (positivada a partir dos seus princípios constitucionais) vale sua observância na comunidade pela sublimação – vivência tão pessoal como universal no convívio histórico e social.

Os bens jurídicos revestem a República de autoridade que modula a sua potestade punitiva, mas isso não implica em manietar o Estado em fetiche narcísico das garantias fundamentais. Em que pese a relevância evidente delas para a configuração de um Estado Democrático de Direito, nada impede que sejam revestidas como objetos de identificação na constituição do sujeito em seu lugar de fala. Trata-se aqui da introjeção de uma relação inconsciente entre o ego e objeto. Ou seja, que garantam a satisfação, mas em via de transtorno, se houver uma identidade do ego e objeto perdido, na medida em que o ego não consiga igualar o objeto introjetado a outros objetos, quando não seja mais capaz de reconhecer que nenhuma percepção garante um acesso objetivo à realidade e não cabe reconhecimentos definitivos sobre a objetividade das percepções.

09-maio,2020

PENSANDO E CONHECENDO II

A expressão “Bem Jurídico” alude sincronicamente à avaliação política (objeto cuja dignidade justifique uma tutela do Direito Penal) e à análise dogmática (injunções da estrutura do delito). O étimo dok remete tanto à suposição como à opinião. O dogma é um ponto de fuga da crença sem o qual haveria a regressão ao infinito na sua fundamentação da verdade. Com o dogma, a verdade se mostra em significações, desde que se suponha que aí esteja para todos como signo da memória e da promessa para o conhecimento. Esta suposição do real no Direito Moderno é a vigência da norma jurídica e cumpre função persuasiva na integridade da correção e da dignificação. A avaliação política é a contraface da análise dogmática em que o dogma pode ser requestionado e ele próprio (re)produzido. A dogmática e a política são ciências trocadas acerca da vigência da norma jurídica. Poder-se-ia ligar a política a uma epigrafia moderna da vigência, conquanto a dogmática seja uma epigonia da norma. Ambas convergem ao tempo e tensão na relação entre validade e verdade, quando visada a norma jurídica.

21-abril,2020

PENSANDO E CONHECENDO I

Vivemos sob o signo da peste. Uma situação dramática. Como tal, é literária e também performática. Daí que uma narrativa sobre esta situação não seja só poesia, pois carrega uma preocupação cênica, de contexto material, seu suporte fático. Tal integração já leva a pensar constantemente nas questões que ligam o drama à vida, seja num contexto antropológico, seja no contexto do Direito. A abertura para o devir só acontece na medida em que se torna dizível na narrativa, de novo, essa integridade existencial do ser humano, que é eminentemente ética e estética, conquanto no hominídeo seja fisiológico e metabólico. Entre humanidade e o hominídeo, há o acontecimento histórico-social sobre o magma imaginário da morte como subsistência e persistência de ser como sentidos de saber viver.

Na agudeza de uma crise epidemiológica severa, não somente doamos o que nos sobra. Dividimos o que temos. Animados pelo espírito da cooperação, não precisamos temer o colapso econômico, porque conseguiremos reconstruir até mesmo o que estiver arrasado ao nível do solo.
Até porque cultivamos a esperança, não negligenciamos a vigilância. A política criminal é a mão forte que acompanha a mão amiga que coopera. Condutas abusivas agora demandam uma política criminal ainda mais eficiente. Os cartéis clássicos são criminalizados por ser indene de dúvida que sejam práticas ruinosas para a economia. Esta certeza traz o sentido de justiça no desvalor dessa conduta por si mesma. Mas, além do cartel, existem outras condutas que merecem neste momento medidas dissuasórias eloquentes, dada a fragilização da economia. O perigo ficou maior.
Nos últimos anos, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica vem avaliando que algumas práticas possam ser tão nocivas quanto o cartel. Por isso, integram com ele o conjunto de condutas ilícitas por objeto: os acordos verticais sobre preços mínimos ou fixos de revenda, ou que levam à proteção territorial entrópica (permanente e rígida), inclusive restrições em vendas passivas ou acordos de distribuição seletiva sem justificação objetiva, ou a proibição ou limitação de importações paralelas.

Diferentemente dos cartéis, que são acordos horizontais com os quais agentes econômicos concorrentes logram domínio artificial do mercado, estes acordos verticais pressupõem um agente que tenha conquistado licitamente este domínio, mas o emprega de maneira abusiva para que ele não seja colocado em xeque. E o faz manipulando a cadeia produtiva em que se insere, por meio da coação ou cooptação dos agentes a jusante ou a montante de sua posição de domínio. Esta manipulação são os acordos verticais com fornecedores de insumos e tecnologias ou com compradores ou revendedores.

Será oportuna a avaliação neste momento em que a economia padece com os duros dias de epidemia, se convém a criminalização desses acordos verticais abusivos como um perigo concreto a ser enquadrado no tipo que hoje somente alcança acordos entre concorrentes – os cartéis. Quiçá seja esta uma medida dissuasória bem vinda para mais pronto restabelecimento de nossos mercados agora enfermos.