A (necessária) reforma da legislação penal econômica

Por Artur Gueiros, Coordenador Acadêmico do CPJM.

07/11/2020.

Uma das características da nossa legislação penal econômica é que ela se encontra dispersa em diversos diplomas legais. Sem pretensão de exaustão, cite-se: Lei 1.521/1951, Lei 6.385/1976, Lei 7.492/1986, Lei 8.078/1990, Lei 8137/1990, Lei 9.279/1996, Lei 9.605/1998, Lei 9.613/1998, Lei 11.101/2005, Lei 12.529/2011, as Leis Complementares ns. 101/2000 e 105/2001, além de dispositivos contidos no próprio Código Penal, como os crimes dos arts. 153, 154, 168-A, 171 e segs., 337-A, 337-B e 337-C. Isso para não mencionar as dezenas de leis meramente alteradores da precedentemente mencionadas.

Esse “emaranhado normativo[1] traz inúmeras dificuldades de sistematização e de interpretação, chegando-se ao ponto de não se poder precisar se determinadas figuras delituosas foram revogadas, expressa ou tacitamente, por incriminações contidas em leis subsequentes, como se vê nos delitos contra as relações de consumo. Demais disso, não raro nos deparamos com má definição de ilícitos, além da utilização de técnicas de reenvio, elementos normativos extrajurídicos e tipos penais abertos, frequentemente presentes na seara penal econômica, v.g., na gestão temerária de instituição financeira.

Conforme vaticinado por Heleno Fragoso – há décadas –, o Direito Penal Econômico trata-se de um conjunto de leis altamente defeituoso, que leva o jurista à perplexidade.[2] Na verdade, a falta de sistematização acarreta não só perplexidades, como também dificuldades ao intérprete dos crimes econômicos, bem como aos agentes econômicos que têm o legítimo direito de desenvolver seus negócios em um ambiente de segurança jurídica. É o que se espera, por exemplo, nos crimes envolvendo tributos federais, estaduais ou municipais.

A esse problema se soma o anacronismo de alguns tipos penais, cujos bens jurídicos que objetivam tutelar perderam relevância com o progresso socioeconômico e pelos influxos da globalização financeira, como a remessa ilegal de divisas, bem como a vetusta Lei de Economia Popular, datada de cerca de meio século antes da chamada era compliance.

Em sentido contrário, isto é, com o objetivo de acompanhar os avanços tecnológicos e as novas demandas socais, vê-se a necessidade de uma melhor regulação, por exemplo, da questão da proteção dos dados dos indivíduos que se encontram em poder de gigantescas corporações, como Google, Facebook, Amazon, assim por diante.

Diante desse cenário, diversos foram os esforços de especialistas – como o saudoso João Marcello de Araujo Jr.[3] – no sentido da unificação e atualização dos delitos econômicos. No limite, as iniciativas convergiram para tentativas de elaboração de uma política criminal clara para tratar, não só de crimes, mas também das penas adequadas àquilo que se pode denominar – de forma não muito precisa – de crimes do colarinho branco ou criminalidade absoluta, como preferia Roberto Lyra.[4]

Releva salientar que uma das iniciativas mais recentes de tentar conferir um pouco coerência a esse “cipoal” de normas foi o PLS 236/2012 (Novo Código Penal). No Título XIII, da Parte Especial, daquele Projeto, encontram-se os Crimes contra a Ordem Econômico-Financeira, subdividido nos seguintes capítulos: I – Crimes contra a ordem tributária e previdência social. II – Crimes contra o sistema financeiro. III – Do crime de lavagem de capitais. IV – Crimes contra a ordem econômica. V – Crimes falimentares. VI – Dos crimes de concorrência desleal (arts. 351 a 387).

Infelizmente, o PLS 236/2012 aparenta ter uma tramitação legislativa lenta e irregular, não havendo uma clara expectativa se e quando entrará em vigor. O mesmo pode ser dito de outros projetos de lei que – atendendo a tratados e convenções internacionais – têm por finalidade de nos harmonizar à legislação dos demais países, como ocorre no caso da prevenção da corrupção e do enriquecimento ilícito de funcionário público.

Nesse panorama, causou estranheza a preocupação do Sr. Presidente da Câmara dos Deputado Federal de criar, em setembro de 2020, uma Comissão de Juristas com o escopo de elaborar um anteprojeto de reforma – unicamente – da Lei de lavagem de capitais (Lei 9.613/1998), olvidando-se de igual providência para o conjunto das leis de repressão aos crimes antieconômicos.

Consoante os “Considerandos” do Exmo. Presidente da Câmara, um dos objetivos da Comissão de experts é o de “definir os limites da norma penal incriminadora”, conferir “maior segurança jurídica ao intérprete” e diminuir “lacunas na legislação que possam dar origens a decisões contraditórias”.[5]

Pensando no interesse de toda a Sociedade, creio que essa alvissareira iniciativa deveria ser estendida para toda a legislação penal econômica, ao invés de se dirigir unicamente à Lei de lavagem de dinheiro. Isso porque a preocupação das autoridades e dos juristas deve ser com a coletividade, visando o aprimoramento das nossas leis, e não somente para atender a certas demandas de grupos pontualmente atingidos por um suposto “alargamento do tipo objetivo”, conforme consta dos referidos “Considerandos”.

[1] Cf. ARAUJO JR., João Marcello de; BARBERO SANTOS, Marino. A reforma penal: ilícitos penais econômicos. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 96.
[2] Cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. O novo Direito Penal Tributário e Econômico. In Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Vol. 12, Rio de Janeiro, 1966, p. 63;
[3] Cf. ARAUJO JR. João Marcello de. Dos crimes contra a ordem econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
[4] Cf. SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Roberto Lyra e o Direito Penal Econômico. In http://www.cpjm.uerj.br/wp-content/uploads/2020/05/Roberto-Lyra-e-o-Direito-Penal-Econ%C3%B4mico.pdf.
[5] Cf. https://www2.camara.leg.br/legin/int/atoprt_sn/2020/atodopresidente-58221-8-setembro-2020-790615-publicacaooriginal-161463-cd-presi.html.