Quebra de patente da vacina: solução para a pandemia?

Por Artur Gueiros, Coordenador Acadêmico do CPJM.

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04/12/2020.

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 12/2021, de autoria do Senador Paulo Paim, determinando que enquanto vigorar o estado de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus, ficará liberada a produção de imunizantes, remédios e insumos, sem observância dos direitos de propriedade industrial dos laboratórios farmacêuticos. (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/02/05/projeto-permite-quebra-de-patente-de-vacinas-testes-e-remedios-para-covid-19)

Consoante a Ementa do PL 12/2021, suspendem-se as obrigações do Brasil de implementar ou aplicar as seções 1, 4, 5 e 7, da Parte II, do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC) – Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS), adotado pelo Conselho-Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), de 2005, e promulgado pelo Decreto nº 9.289/2018, ou de fazer cumprir essas seções nos termos da Parte III do Acordo TRIPS, em relação à prevenção, contenção ou tratamento da COVID-19, enquanto vigorar a situação de emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus. (https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/146245)

A propósito, registra-se da Justificativa do PL 12/2021 a “situação-limite” em que se encontram diversos países assolados pela pandemia, diante da incapacidade de seus sistemas de saúde para evitar a disseminação da COVID-19, bem como para atender adequadamente ao volume de casos, sendo certo que, não bastasse essa situação calamitosa – com vertiginoso número de infectados e de óbitos –, não só não há vacinas com registro definitivo, em face do pouco tempo destinado ao seu desenvolvimento, como não há sequer vacinas suficientes para todas as pessoas. Ademais – prossegue aquele texto –, os custos elevados de vacinas produzidas por laboratórios privados, ou protegidos por patentes, tornam quase impossível aos países pobres conseguir obtê-las no mercado internacional. (https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8922839&ts=1617787649077&disposition=inline)

Diante do gravíssimo quadro sanitário causado pela COVID-19, muitos têm considerado que a “ganância” de setores da indústria farmacêutica estaria colocando os países – inclusive o Brasil – de “joelhos”, pois os empresários teriam o poder de decidir unilateralmente quais nações serão contempladas com a entrega a contento dos imunizantes. Mais que isso, os empresários da indústria farmacêutica teriam o poder de estabelecer “preços abusivos” para seus produtos e insumos, em particular em desfavor dos países que não reservaram – oportunamente – a compra das vacinas.

Acerca do preço, destaca-se que o Brasil pagou ao Instituto Serum, da Índia, mais do que o dobro do valor pago pelos países da União Europeia pelas 2 milhões de doses da vacina desenvolvida pela AstraZeneca: US$ 5,25 por dose. Ademais, os países ricos da União Europeia pagaram apenas US$ 2,16 por dose da mesma vacina. Consequentemente, essa “lógica capitalista perversa” tornou os países “reféns” dos laboratórios, que se valeriam os efeitos legais do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio da OMC – também vigente no Brasil –, para manter essa situação de iniquidade.

No mesmo sentido, a ONG Human Rights Watch defendeu, no mês passado, que o Brasil explicitasse apoio a proposta feita pela Índia e África do Sul da “quebra” das patentes dos imunizantes, garantindo-se assim tratamento universal às pessoas, como aconteceu em 2007, com o medicamento anti-HIV. A ONG apontou que as regras existentes atualmente no TRIPS não seriam suficientes para ofertar uma solução rápida e global contra a COVID-19. (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/09/covid-19-ong-defende-que-brasil-apoie-quebra-das-patentes-das-vacinas.htm)

Dessa forma, diante da posição do Governo brasileiro de não apoiar – até o presente momento –, a quebra de patentes, a Diretora Adjunta da Human Rights Watch, Anna Arida, afirmou: “O Brasil deveria estar do lado certo da história, mudar de posição e se unir aos governos que estão apoiando a suspensão temporária das regras de propriedade intelectual. A suspensão das regras de patente aceleraria a produção de vacinas, salvando inúmeras vidas, e poderia levar ainda a uma recuperação econômica mais rápida, prioridade declarada do governo brasileiro.” (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/09/covid-19-ong-defende-que-brasil-apoie-quebra-das-patentes-das-vacinas.htm).

Sobre a polêmica, reportagem da BBC Brasil do final do mês passado relata o confronto aberto que está acontecendo entre quem defende os direitos de propriedade intelectual em medicamentos e quem exige o acesso as vacinas mais rapidamente possível, bem como o barateamento dos medicamentos e insumos, tornando-os acessíveis aos mais pobres, tudo em nome do interesse maior de salvar vidas humanas:

Vários países de baixa e média renda estão pedindo à Organização Mundial do Comércio (OMC) — o órgão que rege os acordos de direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio — que estabeleça uma suspensão desses direitos para que se possa produzir de forma acessível vacinas contra o coronavírus.

 Países ricos, incluindo Reino Unido, Estados Unidos, Suíça e nações europeias, se opõem à proposta, apresentada pela África do Sul e Índia e apoiada por dezenas de países em desenvolvimento.

 O Brasil não defende essa proposta.

 O argumento do grupo de países desenvolvidos é que essas patentes seriam necessárias para incentivar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos.” (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56454630).

De acordo, ainda, com a BBC Brasil, haveria um “abismo” ou “Apartheid” entre as populações dos países de alta renda, que têm tido amplo acesso as vacinas contra o Coronavírus, e os países mais pobres, muitos deles que sequer conseguiram começar a vacinação. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou, em fevereiro de 2021, que cerca de 200 milhões de vacinas contra a COVID-19 foram administradas, mas 75% delas em apenas nos 10 países mais ricos:

“Gavin Yamey, professor de Saúde Global e Políticas Públicas da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, diz que em quase 130 países, onde vivem mais de 2,5 bilhões de pessoas, praticamente nenhuma vacina foi recebida.

 Tem sido extremamente deprimente ver como as nações ricas esvaziaram as prateleiras. As vacinas têm sido pegas basicamente dizendo ‘eu primeiro’ e ‘só eu’, e isso não é apenas muito injusto como também uma atitude de saúde pública terrível”, disse o especialista à BBC.” (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56454630).

Porém, a questão envolvendo o acesso a medicamentos e o respeito aos direitos de propriedade industrial seria mais complexa do que aparenta à primeira vista, o que não permitiria optar por uma “solução simplista” como a ora proposta. Na verdade, as patentes são uma importante ferramenta para proteger a propriedade intelectual, permitindo e estimulando os investimentos – que não são nada baratos e de retorno altamente incerto – em pesquisas científicas.

Assim, a “quebra” – ou, em termos técnicos, a “licença compulsória” – que, no Brasil, está regulada nos arts. 68 e seguintes da Lei n. 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial), poderia acarretar o desestímulo a inovação científica, aos profissionais que se dedicam ao progresso da ciência, desencorajando-os a seguir adiante com seus trabalhos, que, ademais, dependem de apoio financeiro não só dos poderes públicos, mas, principalmente, dos setores privados que atuam nesse seguimento.

Uma solução intermediária para vencer o “monopólio” da indústria farmacêutica – com seus lucros bilionários –, acelerando e tornando mais acessíveis as vacinas contra a COVID-19, é aquela idealizada pela OMC, denominada de C-TAP (COVID-19 Technology Access Pool), ou seja, um mecanismo global para compilar, em um só lugar, os compromissos de compartilhar voluntariamente o conhecimento sobre o Coronavírus, relacionados com a tecnologia em saúde, propriedade intelectual e dados. De acordo com a OMS, partindo do compromisso que as indústrias fizeram no âmbito do Solidarity Call to Action, respeitando-se os direitos de propriedade industrial, o compartilhamento de conhecimento irá alavancar os esforços coletivos para o desenvolvimento de tecnologia para a superação da pandemia, em benefício do direito básico de acesso a saúde. (https://www.who.int/initiatives/covid-19-technology-access-pool/what-is-c-tap).

Todavia, apesar do apoio de mais de 40 países, fato é que até o momento nenhuma tecnologia foi compartilhada, não tendo havido, assim, a aderência das indústrias farmacêuticas, que, como visto, não somente são as detentoras das patentes como também estão, em sua maioria, situadas nos países mais ricos do planeta.

Considerando esse impasse, há quem considere que a saída é a transferência de tecnologia por intermédio de acordos bilaterais – como o firmado entre a Fundação Oswaldo Cruz-Fiocruz com a AstraZeneca-Oxford –, que permitiria acelerar a produção e aplicação das vacinas, atendendo aos interesses das empresas e dos países envolvidos.

Não obstante, o professor do Instituto de Desenvolvimento Global da Universidade de Manchester, na Inglaterra, Rory Horner, ouvido por aquela reportagem da BBC Brasil, dentre outras questões, disse que é preciso mais do que acordos bilaterais para acelerar o acesso aos medicamentos:

Em termos de produção, esses acordos ajudariam, mas também se trata de melhorar aquisição, compra e distribuição de vacinasO fato de as vacinas serem distribuídas de forma desigual não é resultado da capacidade de fabricação no mundo, mas sim de como alguns países foram capazes de comprar e acessar essas vacinas primeiro.” (https://www.bbc.com/portuguese/internacional-56454630).

Como se pode observar, a despeito da atualidade da polêmica, a questão de fundo é aquela que, desde sempre, atravessa o pensamento filosófico, as ciências econômicas e jurídicas, bem como a ética empresarial: uma questão de “Justiça” – no sentido amplo da palavra.

 É justo respeitar os direitos de poucos frente aos interesses da maioria? É correto que, diante de uma calamidade pública, os mais ricos sejam beneficiados em detrimento dos mais pobres? Quem tem o monopólio de um bem ou serviço pode colocar o preço que quiser, conforme a conhecida “lei” da oferta e da procura, mesmo em tempos de carestia e da “peste” que assola a humanidade?

Seja como for – e para além de um eventual maniqueísmo – fato é que o direito de propriedade industrial está protegido por tratados e convenções internacionais – como aquele mencionados linhas antes –, e pelo Direito interno. Nesses termos, o art. 6º, da citada Lei n. 9.279/1996 diz que ao autor de invenção ou modelo de utilidade será assegurado o direito de obter a patente que lhe garanta a propriedade, nas condições estabelecidas na lei. Em complemento, o art. 42 declara que a patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar a venda, vender ou importar com esses propósitos: (1) produto objeto de patente; ou (2) processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.

No âmbito do Direito Penal Econômico, o art. 183, da Lei n. 9.279/1996, dispõe que comete contra patente de invenção ou de modelo de utilidade, quem: (1) fabrica produto que seja objeto de patente de invenção ou de modelo de utilidade, sem autorização do titular; e (2) usa meio ou processo que seja objeto de patente de invenção, sem autorização do titular.

A pena prevista é de detenção, de três meses a um ano, ou pena de multa. É certo que muitos consideram essa pena “irrisória”, não somente por ser cominação alternada – isto é, aplica-se prisão “ou” multa –, como também pelo fato de que, no Direito Penal, vigora o princípio da aplicação da pena mínima que, no caso, por ser no patamar de três meses, dificilmente escapará da substituição por uma sanção restritiva, mais branda.

A discussão prossegue. Continuaremos no próximo BLOG !