Efeitos retroativos do programa de compliance.

Por Artur Gueiros, Coordenador Acadêmico do CPJM.

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21/06/2020.

No mês passado, o Tribunal de Apelação de Paris enfatizou a importância do respeito ao código de conduta ética empresarial não somente pelos funcionários, mas também por parte de terceiros que venham a fazer negócios com uma empresa submetida à Loi Sapin II. Conforme relatado pelo estimado professor Emmanuel Daoud, no caso em questão, o setor de compliance do Carrefour Marchandises Internationales (CMI) efetuou uma investigação interna que revelou a violação do código de ética do grupo Carrefour, consistente no fato de que os dirigentes da empresa fornecedora 12C, com a qual ela fazia-se negócios desde 2010, teriam dado “presentes” de luxo ao presidente da CMI, vale dizer, uma maleta de grife, uma caixa de champanhe e uma viagem com tudo pago para ele e sua esposa às Ilhas Maurício (https://www.editions-legislatives.fr/actualite/la-violation-dune-charte-ethique-peut-justifier-la-rupture-immediate-de-relations-commerciales).

O que chamou a atenção da comunidade jurídica para essa decisão foi que os cadeaux que caracterizaram atos de corrupção foram dados em 2013, sendo que o Código de Ética do conglomerado Carrefour somente passou a ser extensível aos fornecedores em 2014, em data posterior, portanto, aos fatos apurados nas investigações internas levadas a efeito pelo setor de compliance da empresa. Entretanto, diante da caracterização do ato de suborno, a CMI rescindiu unilateralmente o contrato firmado com a 12C, levando esta a procurar a reparação dos prejuízos perante o Poder Judiciário, tendo em vista que, nos termos do Código Comercial da França, a rescisão unilateral e imediata das relações comerciais somente pode ocorrer em duas hipóteses: (1) descumprimento de uma obrigação pela parte contratante; e (2) em caso de força maior.

Todavia, segundo o Tribunal de Apelação francês, (íntegra do acórdão), o código de conduta ética passou a desempenhar uma função primordial nas empresas que se submetem aos efeitos da Loi Sapin II (Loi 2016/1691) estabelecendo, o art. 17 da Lei, que o código de ética da corporação deve definir e delimitar as hipóteses de comportamentos proibidos e que são suscetíveis de caracterizar atos de corrupção ou de tráfico de influência (https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/article_jo/JORFARTI000033558666). Portanto, é impositivo que todos os dirigentes e empregados devam aderir ao código de conduta ética, sendo o mesmo aplicável para todas as empresas que, com ela, venham a estabelecer negócios. Desse modo, segundo o Poder Judiciário da França, a rescisão unilateral da relação comercial foi legítima, ainda que a obrigação formal da observância do referido documento tenha sido feita em data posterior ao ato de corrupção privada. Nesse particular, é de se observar a gravidade dos atos cometidos pelos dirigentes da 12C, que violaram as obrigações contratuais assumidas, razão pela qual, além da legítima rescisão contratual, ela foi condenada ao pagamento de € 20.000 ao grupo Carrefour (https://outlook.skan1.fr/2021/06/02/compliance-non-respect-charte-ethique-risque-rupture-contrat-commercial-evaluation-tier-loi-sapin-2/).

Segundo, ainda, as observações de Emmanuel Daoud – coordenador do Cercle de la Compliance (https://www.lecercledelacompliance.com/gouvernance/) –, há três importante lições a serem extraídas da polêmica decisão de 5 de maio do Tribunal de Apelação: (1) a consolidação de uma jurisprudência desenvolvida em respeito aos padrões éticos de compliance, cujo o indicativo já vinha sendo direcionado em outros julgados; (2) a percepção de que os programas de compliance são mecanismos de gestão de riscos não apenas penais mas, também, do risco de rompimento unilateral das relações comerciais; e (3) a chancela jurisprudencial acerca da qualidade dos procedimentos de investigações internas corporativas, visto que, um procedimento extremamente cuidadoso, nos quais os resultados das investigações podem ser escrutinados pelo Poder Judiciário, evidenciam e justificam o término imediato e unilateral das relações comerciais (Idem).

Dessa forma, pode-se concluir que, com a decisão judicial de maio passado, a França se consolida como um dos países mais avançados na luta contra a corrupção e no desenvolvimento de programas de compliance. Conforme se teve a oportunidade de escrever monograficamente em outro lugar, depois da edição da Loi Sapin II, o direito francês passou a prever um poderoso mecanismo normativo, de modo que as empresas passaram a ser obrigadas a implantar um sistema de gestão de conformidade destinado a prevenção da corrupção e do tráfico de influência, responsabilizando, em caso de não cumprimento dessa obrigação, não somente elas, como também aos seus dirigentes e parceiros comerciais (SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Direito Penal Empresarial. Critérios de atribuição de responsabilidade e o papel do compliance).