
A análise crítica ao Projeto de Lei 1.588/2020: A necessária modernização do compliance anticorrupção no Brasil.
Por Artur Gueiros, Coordenador Acadêmico do CPJM.
11/10/2021.
A partir de hoje (11/10/2021), abre-se o prazo para emendas ao Substitutivo do Projeto de Lei n. 1.588/2020, que propõe alterar a Lei n. 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção. Cuida-se de etapa conclusiva da tramitação legislativa, atualmente sob análise na Câmara dos Deputados, mais especificamente na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, antes da aprovação final e encaminhamento para sanção presidencial.
Com efeito, o texto original do referido Projeto de Lei (PL) iniciou-se no Senado Federal, por iniciativa do Senador Antonio Anastasia. O objetivo é aumentar a adesão e a eficácia dos programas de compliance anticorrupção, mediante a exigência de certificação de gestor de sistema de integridade, como requisito necessário para a atenuação das sanções administrativas relativas à prática de atos ilícitos contra a Administração Pública.
Segundo o autor da proposta, a certificação da efetividade dos programas de compliance, por parte de entidade especificamente preparada para essa função, transmitiria uma maior confiabilidade à organização empresarial. Demais disso, ela contornaria, dentre outras, as críticas de que haveria uma proliferação de “compliance de fachada”, em detrimento do interesse público nessa seara.
Todavia, ao passar para a Câmara dos Deputados, o PL 1.588/2020 ganhou corpo e complexidade. Além daquela previsão, outras inovações foram trazidas ao documento, consoante se pode observar da análise do Substitutivo apresentado, em 07/10/2021, àquela Comissão, pelo Deputado Rogério Correia (PL 1.588/2020).
Assim é que, no referido Substituto, foram agregadas, ainda que parcialmente, propostas que constavam em nada menos do que 13 (treze) outros Projetos de Lei, igualmente em análise no Congresso Nacional. Segundo a iniciativa parlamentar, esse conjunto de proposições passaria a tramitar “apensado” ao PL 1.588/2020.
Nestes termos, se o primevo Projeto previa tão-somente a exigência de certificado por parte de GSI, como condição para o abrandamento punitivo da Lei Anticorrupção, o segundo acrescenta os seguintes tópicos:
1ª Ao lado da certificação por gestor de sistema de integridade (GSI), há a possibilidade de certificação por pessoa jurídica acreditada (PJA), na forma que vier a ser disciplinada em regulamento dos respectivos Entes Federados;
2ª A exigência, nos contratos de concessão, de programas de compliance anticorrupção por parte das empresas que tenham sido responsabilizadas, pelo menos uma vez nos últimos cinco anos, por ilícitos contra a administração pública;
3ª A liberação da obrigação do pagamento ou da restituição de parcelas decorrentes dos resultados contábeis da pessoa jurídica, para administradores ou pessoas com poderes decisórios que tenham concorrido para a prática de atos lesivos à administração pública nacional ou estrangeira;
4ª A legalização das investigações internas, com efeitos benéficos de redução da multa e do prazo de declaração de inidoneidade e proibição para contratar até a metade, desde que haja a comprovação da prática de atos lesivos em procedimentos que assegurem a ampla defesa e o contraditório aos supostos responsáveis; e
5ª A legalização da definição e dos pilares dos programas de compliance que, até a presente data, constam somente no âmbito infralegal.
Com relação ao primeiro tópico, o Substitutivo propõe uma nova redação ao art. 7º, inc. VIII, da Lei Anticorrupção. Objetiva-se reforçar o sistema de combate a corrupção, não somente com a previsão de certificação por parte de GSI, mas, igualmente, por comprovação de efetividade realizada por PJA. Ao que parece, a intenção é contornar os riscos de “apostar todas as fichas” com as atividades desempenhadas exclusivamente por GSI, prevendo-se, portanto, a possibilidade do estabelecimento de uma salutar competição entre GSI e PJA. Contudo, o sucesso de tal providência irá depender de uma correta regulamentação por parte do Poder Executivo das respectivas esferas de Poder, sob pena da certificação ou da acreditação se tornar uma indesejável “mercadoria” em um espúrio “balcão de negócios” junto às empresas interessadas.
No que diz respeito a previsão de programas de prevenção de corrupção para aqueles que queiram celebrar contratos de concessão com o Poder Público, cuida-se de providência igualmente salutar, posto que tímida. No caso, a alteração não se daria exatamente no texto da Lei n. 12.846/2013, mas, sim, no art. 18, inc. XVII, da Lei n. 8.987/1995, que trata justamente da concessão ou permissão de serviços e obras públicas. A adjetivada timidez justifica-se pelo fato do compliance mandatório ser previsto apenas para as empresas que tiverem sido responsabilizadas, nos últimos cinco anos, por ilícitos contra a administração pública. Na verdade, a exigência de programas de integridade anticorrupção deveria recair sobre toda e qualquer empresa que queira fazer negócios com a Administração Pública, independentemente de ter sido ou não condenada por ilícitos dessa natureza. Nesse sentido, deve-se mencionar a providência, contemplada no art. 25, da Lei n. 14.133/2021 (Lei de Licitação e Contrato Administrativo), da obrigatoriedade do compliance empresarial para as contratações de grande vulto.[1]
Sobre a dispensa de pagamento ou restituição à pessoa jurídica de valores relacionados com os resultados da empresa, devidas ou pagas à dirigentes ou demais pessoas com poder decisório que tenham participado de atos lesivos (art. 7º, inc. XI, da Lei Anticorrupção, cf. o Substitutivo), cuida-se de iniciativa igualmente alvissareira. Nessa toada, não se ignora que diversos escândalos de corrupção, havidos no passado recente, redundaram em lucros expressivos para pessoas jurídicas que, lançados nos balanços societários, acarretaram, por força regimental ou contratual, o pagamento de “polpudos” bônus para dirigentes que, lamentavelmente, estiveram a testa de esquemas de corrupção. Efetivamente, é por todo conveniente a introdução da regra contida no art. 24-A, do Substitutivo. Como bem expressado no seu Relatório, “aquele que tenha participado, comprovadamente, de atos lesivos à administração pública, não pode se beneficiar da própria torpeza.”
Acerca dos dispositivos concernentes às regras das investigações internas corporativas, tratam-se de questões que a doutrina especializada vem pedindo a devida roupagem legislativa. Sendo assim, desde a edição dos conhecidos Upjohn Warning, pela Suprema Corte dos EUA, os diversos ordenamentos jurídicos têm procurado dispor, minimamente, de normas sobre a condução das investigações, seja por parte das instâncias internas (v.g., oficiais de compliance), seja por firmas especializadas na prestação desse tipo de assessoria.[2]
Nesse caminho construtivista, o art. 7º, da Lei Anticorrupção, é acrescido do § 3º, dispondo que a redução da multa e do prazo da declaração de inidoneidade, depende da demonstração, por parte da pessoa jurídica, de que a investigação interna foi apta a elucidar e apresentar todas as informações pertinentes ao caso. Isso implicaria na comprovação: (1) que o ato ilícito foi por ela identificado antes do Poder Público; (2) que ela comunicou, espontaneamente, o ato lesivo ao Ministério Público; (3) que seu compliance atendia aos requisitos legais no momento da prática da conduta; e (4) que ela adotou, após a detecção do ato, medidas para o saneamento e aprimoramento do seu sistema de integridade. Demais disso, o § 1º, do art. 24-A, introduz a seguinte norma: “A pessoa jurídica deverá comprovar a prática do ato lesivo em processo interno de apuração que assegure a ampla defesa e o contraditório.”
A seu turno, a elevação ao status de lei da definição do compliance, bem assim dos seus pilares, cuida-se de medida legislativa igualmente salutar. Nesse aspecto, não deve passar desapercebido que a Lei n. 12.846/2013 – a primeira a tratar, diretamente, dos programas de compliance no Brasil –, apresentou uma redação assaz modesta no seu art. 7º, inc. VIII. Na esteira, aludiu-se a “existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”. Todavia, os contornos e os requisitos dos programas de integridade não haviam sido aclarados pela Lei Anticorrupção. Para colmatar tal lacuna, o Decreto Federal n. 8.420/2015, tratou de definir, no art. 41, o que se entende por compliance anticorrupção. Por sua vez, o art. 42, previu que o programa de integridade deve ser avaliado, quanto a sua existência e aplicação, de acordo com quinze parâmetros estipulados nos seus incisos.[3]
De lege ferenda, é positiva a introdução dos §§ 4º e 5º, e incisos, ao 7º, da Lei n. 12.846/2013, consoante previsto no Substitutivo ao Projeto de Lei n. 1.588/2020. Naturalmente, essa inovação vai gerar efeitos positivos para todo o ordenamento jurídico, bem assim para todas as esferas legislativas do País (Federal, Estadual, Distrital e Municipal).
Em que pesem os tópicos elogiosos ao Projeto de Lei n. 1.588/2020, com o Substitutivo de outubro de 2021, fato é que para a modernização dos programas de compliance no Brasil, é preciso uma reforma legislativa mais ampla. Está a se dizer: é necessário que o Congresso acolha a demanda político-criminal no sentido da adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica (RPPJ) envolvida em atividades ilícitas, consoante vem sido contemplado pela generalidade dos países (EUA, Reino Unido, França, Portugal, Espanha, Argentina, Chile, dentre outros).[4]
A propósito, sabe-se que a Exposição de Motivos do Projeto de Lei n. 6.826-A, de 2010, que deu azo à Lei n. 12.846, aludia, no seu item 10, a uma suposta – e duvidosa – ineficácia ou falta de celeridade da instância penal no que tange a punição do ente moral. Todavia, os fatos havidos a partir do ano de 2014, nomeadamente o escândalo de corrupção envolvendo as grandes empreiteiras brasileiras que mantiveram negócios espúrios com companhias estatais e com autoridades das altas esferas de governo, tanto no Brasil como em países vizinhos, descortinaram que somente a punição criminal de entes morais surte – de fato e de direito – efeitos dissuasórios. Essa assertiva pode ser ilustrada com a constatação, amplamente divulgada, no sentido de que o então “departamento de propina” – ou departamento de operações estruturadas – da empresa Odebrecht, continuou a funcionar, distribuindo dinheiro para políticos e gestores públicos, mesmo depois da deflagração da Operação Lava-Jato e da prisão dos seus principais administradores.[5]
Nesse terreno, convém mencionar a Ley 27.401/2017, promulgada, pelo Poder Legislativo da Argentina, e que entrou em vigência no ano de 2018, pois ela pode ser considerada uma “lei de segunda geração” frente à nossa Lei 12.846/2013. Com efeito, a homóloga Lei Anticorrupção Argentina previu a RPPJ por atos de corrupção, sendo certo que, além da atenuação da pena, o seu Artículo 9º dispõe que a existência e efetividade de programa de compliance pode acarretar a isenção da sanção criminal da empresa envolvida em atos de corrupção. Essa providência, similar à de outros países, contribui a favor da adoção de programa de compliance efetivo por parte das empresas interessadas em travar negócios com os entes públicos, acautelando-se, pois, os riscos de perpetração de atos de corrupção por parte dos seus dirigentes ou prepostos.
Dito as coisas de outro modo, tem-se que o Substitutivo poderia ter ido além. Poderia ter adotado redação similar àquela contida nos arts. 41 a 44, do Projeto de Lei n. 236/2012 (Novo Código Penal), em andamento no Senado Federal, referente à RPPJ para ilícitos praticados contra a Administração Pública nacional ou estrangeira. Evidentemente, considerando que o citado PLS 236 tramita, há quase uma década, no Congresso, mister se faz colher as propostas de atualização daqueles dispositivos, consoante preconizado pela melhor doutrina do Direito Penal Econômico.[6]
A guisa de conclusão, considera-se que a presente sugestão pode e deve ser recebida como proposta de emenda, conforme aludido no primeiro parágrafo desse ensaio. Em síntese, muito mais do que certificação por parte de gestor de sistema de integridade ou de acreditação de pessoa jurídica pelo Poder Público, o que efetivamente contribui para a modernização e efetivação do compliance anticorrupção é a previsão do societas delinquere potest, consoante a estratégia politico-criminal do porrete e da cenoura.[7]
[1] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Direito Penal Empresarial. Critérios de atribuição de responsabilidade e o papel do compliance. São Paulo: LiberArs, 2021, p. 117-119.
[2] SOUZA, Artur de Brito Gueiros; MELLO, Rodrigo de Castro Villar. A importância das investigações internas corporativas. No prelo.
[3] O XVI parâmetro (transparência da pessoa jurídica no que tange a doações para candidatos e partidos políticos), perdeu sentido com a vedação, pelo Supremo Tribunal Federal, dessa modalidade de doação por parte de empresas.
[4] Cf. BARRILARI, Claudia Cristina. Crime empresarial, autorregulação e compliance. 2ª ed. Atualizada e Ampliada. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 137 e segs.
[5] GASPAR, Malu. A Organização. A Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 118 e segs.
[6] ROCHA, Fernando A. N. Galvão. Teoria do Crime da Pessoa Jurídica. Proposta de alteração do PLS 236/12. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019, passim.
[7] SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Op. cit., p. 69.