EM FOCO

Bichara Neto

Entrevista com Bichara Neto

Advogado Especialista em Direito Esportivo e Sócio do escritório Bichara e Motta Advogados

junho, 2020

Como você avalia que federações e clubes avançaram na adoção e aplicação efetiva de programas de compliance no Brasil após os últimos escândalos de corrupção no futebol? 

Diria que os avanços foram satisfatórios, tendo em vista o histórico do futebol brasileiro. Entendo que a implementação de programas de compliance seja algo contínuo, sempre com espaço para evoluir. As sérias acusações de corrupção feitas a grandes dirigentes do futebol mundial, inclusive na FIFA, foram fatores que abalaram a credibilidade do esporte nos últimos anos. Foi a partir de então que vimos algumas federações e clubes darem mais importância a temas relevantes como compliance, governança, transparência e integridade, o que deu origem a comitês de reformas para desenvolvimento de tais práticas na organização das entidades. Assim, os escândalos serviram como um “sinal de alerta” para a adoção de melhores práticas no esporte. Hoje, em 2020, percebemos que os clubes que passaram a adotar políticas sérias de compliance e governança corporativa no começo da década, já se encontram alguns passos à frente dos demais. Não é à toa que esses clubes possuem uma situação financeira mais confortável, maior atratividade para parcerias comerciais e uma competitividade acima da média do futebol brasileiro. Os clubes que ainda não adotaram tais práticas tendem a encarar mais dificuldades para competir nos próximos anos.

Por que os clubes brasileiros não costumam implementar políticas de compliance e de governança corporativa?

Vejo isso como um aspecto cultural. O futebol brasileiro sempre foi um ambiente preponderantemente político. Por isso, implementar políticas de compliance e governança corporativa nunca foi tarefa fácil. Podemos até dizer que são medidas “impopulares”, tal como políticas de austeridade financeira, visto que o torcedor quer, em última análise, um time forte que conquiste títulos. Sempre foi mais fácil um candidato se (re)eleger presidente de um clube prometendo trazer bons jogadores do que prometendo cortar gastos, pagar dívidas, prestar contas mediante auditoria externa, implementar procedimentos efetivos para combater o conflito de interesses, aumentar a transparência e criar canais de denúncias. Entretanto, sinto que essa visão vem mudando gradualmente. Os torcedores percebem que a situação financeira da maioria dos clubes brasileiros é catastrófica e algo precisa mudar. É só analisarmos os exemplos dos últimos anos. Clubes que passaram por um processo árduo de restruturação organizacional, adotaram uma postura de responsabilidade financeira hoje vem colhendo os frutos. De outro lado, temos clubes que não se preocuparam com transparência, governança ou compliance e acabaram por eleger gestões que os colocaram em um buraco financeiro praticamente irreversível. Os exemplos são ótimos para abrir os olhos daqueles que acompanham ou trabalham com futebol. Certa vez, há muitos anos, ouvi de um cliente, cartola de um grande clube brasileiro: “Dr., não há planejamento financeiro que resista a uma derrota no domingo…”. Esses tempos ficaram para trás.

Você acredita que as autoridades brasileiras estão preparadas para investigar crimes no esporte?

Devido às altas cifras envolvidas, o futebol foi por muitos anos visto por criminosos como uma excelente oportunidade para negócios ilícitos. Há relatos até de transferências fictícias de jogadores inexistentes. Atualmente, após a implantação do Sistema Eletrônico de Transferências da FIFA (TMS na sigla em inglês), essas práticas já não são mais comuns. A baixa transparência nos balanços, a ausência de órgãos fiscalizadores independentes e a falta de travas estatutárias mais rígidas nas entidades desportivas foram um chamariz para fraudes, lavagem de dinheiro e apropriação indébita. Para investigar tais crimes de maneira eficiente, as autoridades brasileiras devem se especializar e conhecer profundamente a atividade econômica do esporte, que possui diversas peculiaridades e é inegavelmente distinta de outros setores.

Que avaliação você faz do modelo clube-empresa e qual você acredita que deva ser o papel do compliance neste novo modelo de gestão?

Existem, atualmente, alguns projetos de lei de clube-empresa tramitando no Congresso Nacional e eles possuem diferenças relevantes entre si, razão pela qual é difícil ser assertivo neste momento. Acredito que a conversão da associação em clube-empresa não será necessariamente boa para todos os clubes. Sou da opinião de que isso pode servir de solução para aqueles clubes que precisem atrair investimentos novos, mas que estejam cientes da importância da implantação de medidas rigorosas de governança, sob pena de falirem, O futebol até pouco tempo era visto como uma atividade voltada para o lazer, que hoje se transformou numa indústria que movimenta bilhões ao redor do mundo. Entendo que a gradual mudança da estrutura associativa dos clubes para uma sociedade empresarial será o caminho natural no Brasil para muitas agremiações, assim como ocorreu em diversos clubes estrangeiros. Alguns adotarão uma nova estrutura nos próximos anos, outros adotarão nas próximas décadas, provavelmente de acordo com a conveniência do momento – em especial, a situação de suas finanças e a perspectiva de injeção de considerável aporte financeiro. Não obstante, a implementação do clube-empresa não deve ser vista como um fim, mas como um meio para os clubes evoluírem.

Quais são os desafios que vê no campo do Direito Desportivo no momento pós-pandemia?

Para o advogado que milita no ramo, os principais desafios a serem enfrentados no estarão relacionados à precária situação financeira dos clubes brasileiros. Na realidade, a pandemia não criou nada novo, mas acelerou processos e expôs as feridas que os clubes brasileiros carregam há décadas. Com uma considerável redução das receitas nesse período, tais como bilheteria, patrocínios, premiações e transferência de atletas, os clubes viram seus balanços drasticamente afetados, levando muitos a tentar negociar uma redução da remuneração de seus atletas, atitude esta que possui algumas repercussões jurídicas a serem cuidadosamente analisadas. No mais, o impacto econômico da pandemia nos clubes brasileiros tende a atrasar ainda mais o pagamento de dívidas, inclusive de processos tramitando nos órgãos de resolução de conflitos da FIFA. Nesse ponto, a entidade máxima inclusive já comunicou aos stakeholders que não será tolerante com devedores que queiram utilizar a pandemia como justificativa para os atrasos de dívidas vencidas antes da crise, o que aumenta ainda mais o risco de imposição de sanções disciplinares sobre os clubes devedores brasileiros. Portanto, a pandemia deve ser vista como um aprendizado aos clubes. Não adianta passar por isso e voltar a repetir as mesmas práticas ultrapassadas de administração. Gestão profissional, compliance, governança corporativa, integridade, responsabilidade financeira e transparência deverão compor a lista de prioridades dos clubes a partir de agora.