EM FOCO

Guilherme France

Entrevista com Guilherme France

Assessor Parlamentar, Senado Federal.

setembro, 2020.

Qual foi o papel das organizações da sociedade civil brasileira no combate à corrupção em tempos de pandemia? 

Durante a pandemia, mais uma vez, organizações da sociedade civil mostraram o potencial transformador que o seu trabalho tem para promover melhorias na gestão pública, incentivar o controle social e reduzir a corrupção. O destaque desse trabalho talvez tenha sido, para além da realização de avaliações independentes de políticas públicas e práticas administrativas de entes governamentais, a cooperação técnica desenvolvida entre essas organizações e gestores públicos de todo o país, especialmente, no nível subnacional. Reconhecendo as dificuldades e particularidades de estados e municípios, é necessário se engajar construtivamente com esses gestores para promover melhores práticas de transparência e gestão.

Já nas primeiras semanas da pandemia no Brasil, a Open Knowledge Brasil desenvolveu o Índice de Transparência da Covid-19, que se mostrou uma importante ferramenta para monitorar a divulgação de informações epidemiológicas (número de leitos, de doentes, óbitos, testes, etc.) pelos estados brasileiros e pelo governo federal. Trata-se, afinal, de informações absolutamente essenciais para que a imprensa e a sociedade acompanhem e avaliem a eficácia das medidas implementadas pelos governos para conter a pandemia. As diversas polêmicas sobre a divulgação desses dados pelo governo federal mostraram que claramente o poder da informação e importância de se monitorar a sua divulgação.

Também antenada para o potencial transformador da competição positiva entre os entes avaliados, a Transparência Internacional Brasil desenvolveu o Ranking de Transparência no Combate à Covid-19 para avaliar e promover a transparência das contratações emergenciais realizadas em resposta à Covid-19 – uma área onde esquemas de corrupção se proliferaram ao longo dos últimos meses. Tão bem-sucedido que foi a experiência, especialmente na resposta e no engajamento dos gestores públicos, expandiu-se a experiência para incluir avaliações sobre a transparência de outras políticas públicas relacionadas à pandemia, como as medidas de estímulo econômico e proteção social.

Outras organizações – incluindo a Transparência Brasil e o Instituto de Governo Aberto -, por sua vez, desenvolveram um Guia de Fiscalização Cidadã que promove o controle social e fornece ferramentas para que todos interessados possam desempenhar um papel na fiscalização e monitoramento das compras públicas. Estas foram apenas algumas das iniciativas de organizações da sociedade civil para promover a transparência e combater a corrupção durante a pandemia. O valor e o potencial destes esforços contrastam com os reiterados e infundados ataques do Presidente ao trabalho de ONGs.

Quais seriam os principais desafios enfrentados pela Administração Pública na pandemia, especialmente no que tange ao risco de corrupção nas contratações públicas? 

Os desafios são inúmeros. Não posso deixar de mencionar que, assim como todas as empresas e organizações, a Administração Pública enfrentou dificuldades enormes para se adaptar às restrições criadas pela pandemia: desde o trabalho remoto até a mudança completa de foco, com a interrupção de planos e processos em curso.

De modo geral, pode se dizer que houve um problema global: contratações de valores altíssimos, realizadas às pressas, com controles flexibilizados. Aumentava o risco de corrupção o cenário do setor privado, com poucos fornecedores para produtos especializados, como respiradores e EPIs, e uma elevada demanda, doméstica e internacional. As condições favoreciam os fornecedores, enquanto gestores públicos, sob intensa pressão da sociedade, buscavam fazer de tudo para adquirir os bens e serviços necessários para o sistema de saúde.

Uma das grandes dificuldades enfrentadas no Brasil foi a inadequação da legislação vigente sobre licitações para responder ao momento de crise. Foram necessárias diversas inovações legislativas, usualmente por medidas provisórias, para regulamentar a realização de contratações públicas na velocidade exigida pela pandemia. Aprender e se adaptar a essas novas regras, que mudavam constantemente, não foi fácil.

Faltou também coordenação na resposta à pandemia no âmbito da Administração Pública brasileira. A grave omissão do Presidente da República dificultou ainda mais uma tarefa que já era desafiadora: preparar o Estado brasileiro para a maior crise sanitária de uma geração. No final das contas, coube a cada estado e município cuidar de si. Além dos prejuízos econômicos de não se aproveitar possíveis ganhos de escala, não dá pra negar que é muito mais difícil fiscalizar 5 mil e tantos órgãos realizando contratações públicas vultuosas do que um punhado.

Qual é o nível de maturidade dos programas de integridade da Administração Pública?

Diversos estados e municípios e órgãos públicos federais têm desenvolvido programas de integridade a partir do marco legal existente. Há pouca informação, no entanto, sobre esse processo, tanto individualmente, quanto de modo agregado. Avaliações de políticas públicas dependem de pesquisas qualitativas e quantitativas detalhadas, o que ainda falta no país. Por isso, é extremamente importante o esforço realizado pelo Tribunal de Contas da União, em parceria com a Rede de Controle Nacional, para avaliar os riscos de fraude e corrupção em órgãos públicos de todo o país.

No mais, parece faltar uma percepção de que a administração pública precisa fazer mais do que implementar medidas de compliance pública. Afinal, focar-se, exclusivamente, na implementação das normas já existentes pressupõe uma avaliação de que estas já estão em nível adequado e suficiente. Pelo contrário, no entanto, a legislação brasileira em todos os níveis, mas especialmente no subnacional, ainda precisa ser muito aprimorada. Questões como conflitos de interesse, lobby, proteção de denunciantes precisam ser regulamentadas. Por isso, avançar na agenda de integridade depende de um esforço político conjunto do Poder Executivo e Legislativo na aprovação de reformas legais e administrativas.

De que maneira a tecnologia pode ser útil na prevenção da corrupção?

Sistemas de gerenciamento de informações podem ser utilizados para comparar e cruzar um volume gigantesco de dados, produzindo análises e conclusões relevantes na identificação de riscos e indícios de corrupção. Por exemplo, a Controladoria-Geral da União disponibilizou o Painel de Contratações Relacionadas à Covid-19 com informações sobre os preços pagos em contratações emergenciais por órgãos públicos de todo o Brasil. Informações se prestam à interpretação, todavia. Então, é importante garantir que esses sistemas esclareçam bem suas limitações, funcionalidades e objetivos. O Painel da CGU, por exemplo, serve de referência para gestores realizando contratações, mas dá margem a interpretações indevidas sobre aquisições específicas, já que a informação é pouco detalhada no agregado.

Gostaria de chamar atenção, no entanto, para o papel que a tecnologia pode ter ao aproximar os indivíduos do poder público e facilitar o monitoramento de suas ações. É pela publicação de informações em seus sites – transparência ativa – que órgãos públicos prestam contas à sociedade do que fazem. Um olhar humano para o uso dessa tecnologia exige que sejam utilizadas ferramentas não só para fornecer essas informações, mas para torna-las acessíveis e inteligíveis para o cidadão médio, ou seja, para pessoas que não são especialistas em gestão pública, licitações, etc. A tecnologia pode ser utilizada para apresentar as informações de modo agregado, mas também em dados abertos. Igualmente importante garantir que esses sites sejam divulgados amplamente, razão pela qual as redes sociais são tão importantes. Combater a desinformação – tão comum neste momento – exige um engajamento efetivo do poder público na disseminação de informações oficiais.