EM FOCO

Mihailis E. Diamantis

Entrevista com Mihailis E. Diamantis

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, publicando amplamente sobre crimes de colarinho branco, em especial sobre a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Com base em insights do Direito, da Filosofia, Ciência Cognitiva e Economia, ele enfatiza que as questões fundamentais que frequentemente deixamos de enfrentar podem conter respostas para persistentes dilemas da atividade profissional.

junho, 200

Qual a opinião do Senhor sobre os programas de compliance difundidos pelo mundo a partir da experiência norte-americana?

Acho que todos concordam que programas eficazes de compliance são a melhor maneira de evitar a criminalidade corporativa. Contudo, a coisa mais importante que ainda não descobrimos é como fazer com que as empresas implementem um compliance efetivo. Nos Estados Unidos, usamos a estratégia da “cenoura e vareta” (carrot-and-stick aproach).

Para a “cenoura”, os programas de compliance oferecem dois benefícios legais para as corporações: (1) os Procuradores têm o poder de considerar o compliance como um fator para decidir se e como imputar às empresas suspeitas da prática de crime, e (2) empresas condenadas por crime recebem vantagens no momento da sentença, se elas tinham um programa de compliance eficaz. Esses dois benefícios parecem ser suficientes para fazer com que as corporações venham a gastar dinheiro com compliance, mas não são suficientes para levá-las a considerar a sério o compliance. Elas parecem estar mais focadas no cumprimento de “vitrines” superficiais (o que pode ser suficiente para garantir aqueles dois benefícios legais), em vez de uma reforma verdadeiramente eficaz (que viria a impediria a má conduta corporativa).

Para a “vareta”, os Estados Unidos concentram-se principalmente em multas. Acredita-se que sanções pecuniárias impostas às corporações que cometem crimes as incentivarão, em primeiro lugar, a implementar programas de compliance para prevenir o ilícito. Existem três problemas com essa lógica: Primeiro, a infração corporativa pode ser muito lucrativa e difícil de detectar. Isso significaria que as multas devem ser muito altas para servir como um impedimento eficaz. No entanto, o patamar máximo da sanção pecuniária seria o valor dos ativos da corporação, e isso provavelmente ainda seria muito baixo. Segundo, há um desalinhamento fundamental entre as multas corporativas e o efeito que queremos que elas tenham. As multas corporativas afetam os interesses dos acionistas (shareholders) ao reduzir o valor da corporação. Mas, para obter uma reforma de compliance, precisamos impactar os incentivos dos administradores que estão em posição de fazer mudanças no local. Em outras palavras, as multas corporativas sobrecarregam a parte errada. Terceiro, todos falamos que as multas incentivam as empresas a impedir o crime implementando o compliance. Mas, concretamente, as multas induzem as corporações a não serem pegas pelos ilícitos que cometeram. Obviamente, elas poderiam fazer isso investindo no cumprimento efetivo da prevenção do crime. Mas também podem fazer isso por intermédio da ocultação eficaz que impediria a detecção do crime corporativo. Essa última escolha, muitas vezes adotada pelas empresas, apenas incrementam os desafios subjacentes ao Direito Penal Empresarial.

A estratégia da “cenoura-e-vareta” pode funcionar, mas precisamos de “cenouras” mais suculentas e “varetas” maiores. Um atrativo seria garantir que as empresas viessem a receber o perdão total caso tivessem implementado um cumprimento eficaz quando da prática de um ilícito. Os estudiosos vêm propondo essa “defesa (defense) de compliance” há décadas. Esse incentivo prospectivo certamente estimularia um interesse mais sincero no sentido do compliance efetivo. Recentemente, propus um incentivo ainda mais ambicioso: as empresas deveriam receber isenção (immunity from liability) se, depois de detectar internamente a conduta criminosa, reformarem proativamente qualquer vulnerabilidade de compliance que permitou a ocorrência da má conduta. Isso daria às corporações incentivos mais efetivos para monitorar a si mesmas e iniciar a reformulação.

Quanto às “varetas maiores”, a legislação precisaria de uma resposta mais direta quando nos deparamos com a criminalidade corporativa. As multas corporativas têm como alvo a mudança de postura das pessoas erradas (os acionistas ao invés dos administradores) e acarretam estímulos errados (ocultação do desvio ao invés da reformulação). Se a reformulação do compliance é o que, em última instância, a lei criminal quer, ela deve abandonar multas e impor a reformulação diretamente por meio de intervenção invasiva (invasive intervention) depois da condenação.

Qual é a sua avaliação sobre a atuação da Procuradoria nos crimes corporativos?

Como já disse, acredito que as sanções criminais corporativas devem ser direcionadas, principalmente, para a melhoria da conformidade empresarial. Os Procuradores dos Estados Unidos fracassaram em grande parte na busca por esse objetivo, apesar de professarem fé na reformulação corporativa. Eu até mesmo chegaria a dizer que os Procuradores impediram a verdadeira reforma corporativa.

Os Procuradores se colocram na linha de frente (e geralmente os únicos) dos agentes de reformulação corporativa no sistema de justiça criminal. A maioria das grandes empresas tem celebrado acordos diferidos de acusação (deferred prosecution agreements) ou, em certos casos, acordos de não acusação (non-prosecution agreements) quando são investigados por má conduta criminal. Esses acordos deixam os Procuradores sob controle e, em geral, requerem que as empresas implementem reformulações de compliance. Isso é problemático por vários motivos:

Especialização: Os Procuradores não são especialistas em compliance. Eles mostraram muito pouco entendimento de como é um compliance efetivo. Compliance é uma ciência. É um campo de estudo. É uma área de especialização. E isso simplesmente não faz parte do currículo da maioria dos Procuradores. Embora os auxilie, na maioria das vezes, a contratar monitores corporativos para ajudar a implementar a reformulação do compliance, os Procuradores não têm como saber se o monitor corporativo é bem-sucedido. Os monitores podem enviar relatórios periódicos para a Procuradoria, mas os Procuradores não têm a experiência necessária para avaliá-los. Também há poucas razões para pensar que os relatórios dos monitores são totalmente objetivos pois, na prática, são autoavaliativos.

Manutenção de registros: os Procuradores não elaboram o tipo de registro básico de dados que precisamos para melhorar nosso entendimento a respeito do compliance efetivo ou de como implementá-lo. Os Procuradores e as corporações não têm obrigação de disponibilizar publicamente os acordos (deferred prosecution agreement). Alguns são até mantidos totalmente em segredo. Para aqueles que são publicamente disponíveis, os relatórios dos monitores que são elaborados, nos termos dos acordos, remanescem sob sigilo. Isso é uma questão importante, pois, sem acesso a esses relatórios, o público não tem como saber quais as específicas reformulações que uma empresa implementou. Isso significa que o público não pode supervisionar a validade das reformulações ou aprender com os sucessos e fracassos das tentativas de reformulação dos grandes criminosos corporativos. Essa situação poderia ser atenuada se os Procuradores mantivessem seus próprios registros internos. No entanto, uma auditoria do Gabinete de Prestação de Contas (Government Accountability Office) sobre a utilização dos acordos pelos Procuradores federais concluiu: “O DOJ (Department of Justice) não pode avaliar e demonstrar até que ponto os acordos (Deferred Prosecution agreements e Non Prosecution Agreements) … contribuem para os esforços da Procuradoria ao enfrentamento da criminalidade corporativo, visto não possuir meios para avaliar sua eficácia”.

Incentivos: Os Procuradores não têm incentivos pessoais para garantir uma reformulação corporativa eficaz. Procuradores são seres humanos que buscam reconhecimento pessoal, reputação e promoção em suas carreiras. Isso quer significar que eles querem obter manchetes em casos de grande repercussão, não precisando se preocupar especificamente com algum assunto individual. Repercussão na imprensa envolvendo grandes multas em dólares atraem mais atenção do que programas cuidadosos e detalhados de reformulação corporativa.

Na opinião do Senhor, como a Academia e a pesquisa criminológica podem ajudar na prevenção do crime corporativo?

Toda disciplina tem alguma contribuição importante para dar. Gosto particularmente de ler análises econômicas e comportamentais das causas do crime corporativo. Mas minhas próprias contribuições tendem a ser mais abstratas. Uma coisa que os teóricos do Direito podem oferecer são novas ferramentas conceituais para reformulação de problemas antigos. Em meu próprio trabalho, sugeri que pensar em criminogênese corporativa em termos caracterológicos pode dar uma nova perspectiva sobre o que estamos tentando alcançar com o Direito Penal Empresarial e como alcançá-lo.

É possível pensar em modelos sancionatórios e regulatórios que garantam dissuasão, retribuição e reabilitação de empresas?

A única garantia certa é que o que estamos fazendo atualmente nos Estados Unidos não está atingindo nenhum desses três objetivos. Acho que também precisamos estar preparados para enfrentar a possibilidade de que a dissuasão e a retribuição sejam impossíveis de alcançar no contexto corporativo. Os retributivistas querem que as corporações sofram apenas porque merecem. O problema é que as empresas não experimentam sofrimento. Os teóricos da dissuasão querem alterar os incentivos corporativos para que a conduta criminal se torne desagradavelmente cara. No entanto, assim como as corporações não podem sofrer, elas também não têm seus próprios incentivos. Os indivíduos que agem em nome das empresas têm incentivos, e uma maneira de impedir a má conduta corporativa seria direcioná-los. Mas o castigo corporativo não pode ser o caminho para fazê-lo. Quaisquer que sejam os benefícios que um funcionário possa obter por má conduta, muitas vezes superam a parcela fracionária que ele experimentaria de qualquer sanção no nível corporativo.

Que propostas seriam necessárias para reformular o atual modelo de sancionamento?

Se a dissuasão e a retribuição corporativa parecem ser inatingíveis, precisamos reconsiderar seriamente o que estamos tentando alcançar com o Direito Penal Empresarial e como alcançá-lo. Argumentei, por exemplo, que deveríamos abandonar as penas pecuniárias contra as pessoas jurídicas. As multas corporativas fazem com que as pessoas erradas sofram e afetem os incentivos errados. Em vez disso, devemos nos concentrar no que podemos alcançar com relação aos criminosos corporativos: reformando-os e incapacitando a sua habilidade de causar danos até que seja reformado. Atingir ambas exigiria mais políticas intervencionistas, além de uma maior colaboração entre uma gama mais ampla de autoridades de justiça criminal, incluindo Procuradores, Juízes, reguladores e monitores corporativos. A atual estratégia norte-americana, que é liderada pela Procuradodia, atuando isoladamente, não está à altura dessa tarefa.

Acredito que existem dois modelos que poderiam servir como guias úteis para redesenhar a forma como sancionamos as corporações. O primeiro é o da probation, onde os juízes liberam criminosos condenados por interesse público, mas impõem várias restrições e requerem programas detalhados de reabilitação. Os juízes têm amplo critério, em consulta com especialistas relevantes, para definir termos detalhados da probation. Uma efetiva probation envolve a colaboração entre muitas partes, incluindo o réu, o juiz, o procurador, o oficial de condicional, empregadores e assistentes sociais. A legislação dos Estados Unidos abre explicitamente a possibilidade de colocar empresas condenadas sob parole.

Um segundo modelo para reformular a resposta penal do crime corporativo enfatizaria o tratamento e não a punição. Quando o tribunal absolve um acusado que conseguiu, com êxito, apresentar uma alegação de insanidade, ele é normalmente transferido para uma instituição de saúde mental de natureza não punitiva, até que não represente mais um perigo para a sociedade. Recentemente, sustentei a favor de estender a tese de insanidade às empresas e, em certos contextos, utilizar o “tratamento” por intermédio do compliance como uma ferramenta para a reformulação. Ao impor várias limitações às atividades corporativas, o judiciário pode neutralizar o perigo que as empresas representam, ao passo em que são efetuadas reformas compulsórias. O modelo de probation (diferentemente da atual estratégia dos EUA para sancionar empresas) exigiria a colaboração entre um conjunto diverso de partes intervenientes, incluindo o réu (que deve implementar as reformas), os especialistas em compliance (que especificam as reformulações) e os julgadores (que devem decidir em que momento o acusado não representa mais um perigo).

Quais sugestões o Senhor daria aos interessados em pesquisar e estudar crimes corporativos no Brasil?

Eu acho que o diálogo internacional, como esta entrevista ao CPJM, é fundamental. Estamos todos procurando descobrir a melhor forma de lidar com o crime corporativo e, até o momento, nenhum país encontrou uma boa solução para tanto. Alguns dos problemas são compartilhados por todos nós. Por exemplo, eu pedi a um aluno brasileiro que investigasse como o Brasil cuida dos crimes cometidos por instituições sem fins lucrativos. Aparentemente, o Brasil adotaria uma abordagem semelhante à dos Estados Unidos, e acho que ambas são problemáticas. Mas existem questões que podem estar sendo enfrentadas em um determinado país que podem servir para solucionar desafios persistentes em outro. Ao invés de ficar reinventando a roda, devemos compartilhar informações e experiências reciprocamente. Isso só será possível se estivermos em constante diálogo. Estou à disposição!