EM FOCO

Paulo Roberto Galvão

Entrevista com Paulo Roberto Galvão de Carvalho

Procurador da República, hoje com atuação no Distrito Federal. É membro da Força-Tarefa da Operação Lava Jato no Paraná desde 2014. Integra a Comissão Permanente de Assessoramento de Leniência e Colaboração Premiada, da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Mestre em Direito Público (LL.M.) pela London School of Economics and Political Science, na Inglaterra.

novembro, 2020.

Quais as funções do acordo de leniência em um sistema de enfrentamento da corrupção?

É possível identificar três funções principais para o acordo de leniência em um sistema anticorrupção. Primordialmente, o acordo pode ser visto como uma técnica de investigação, meio de detecção da corrupção. Assim, leniência é um meio de obtenção de prova em investigação sobre atos de corrupção, paralelamente ao que é a colaboração premiada em relação às pessoas naturais na seara criminal. A função do acordo então é criar incentivos para que empresas tragam ao conhecimento das autoridades atos de corrupção e assemelhados de que participaram, permitindo assim o início ou a expansão de uma investigação. Essa investigação necessariamente deverá levar à identificação de terceiros que tenham participado dos ilícitos, podendo ser outras empresas envolvidas ou os próprios servidores públicos. Esse entendimento está refletido e assentado em diversas decisões da nossa 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (5ª CCR/MPF), e decorre da própria Lei Anticorrupção (LAC), quando impõe, no art. 16, como requisitos para o acordo a identificação dos demais envolvidos na infração e a obtenção de informações que comprovem o ilícito.

Uma segunda função do acordo de leniência é servir como instrumento de promoção da consensualidade. Com isso, quero dizer que o acordo pode também servir a abreviar o litígio – judicial ou administrativo – e facilitar a composição entre as partes, Estado e infrator/colaborador. A LAC também prevê essa função do acordo, quando estipula que deve haver a admissão na participação no ilícito, cooperação e comparecimento a todos os atos e admissão de penalidade abrandada. Embora a LAC exclua a discussão sobre a quitação do dano do acordo de leniência, os acordos devem conter a previsão de reparação ainda que parcial do dano, ou como antecipação, como estipula a Orientação Normativa nº 7, de 2017, da 5ª CCR/MPF.

Uma terceira função, talvez secundária, mas também relevante, é a do instituto da leniência como instrumento de regulação, na medida em que serve como incentivo à implementação de programas de integridade nas empresas, de forma independente à identificação de ilícitos, ou a posteriori.

O sistema brasileiro tem funcionado adequadamente para detectar casos de corrupção?

O termo detecção indica o meio pelo qual a infração chega ao conhecimento das autoridades. Na corrupção, isso é especialmente importante porque se trata de um crime clandestino, praticado de forma a ocultar não apenas seus autores, como a própria ocorrência do delito. Um dos objetivos do sistema é quebrar esse pacto de silêncio entre corruptor e corrompido e incentivar que um deles traga ao conhecimento das autoridades o ilícito.

Essa detecção pode se dar antes ou após a existência de qualquer investigação sobre os fatos. Teremos a leniência como fonte primária da detecção quando ocorrer antes mesmo de qualquer investigação, por meio uma colaboração espontânea, autodenúncia ou self-reporting, visando a um acordo. Esse seria o cenário ideal almejado por uma legislação anticorrupção.

No entanto, a análise dos números da realidade brasileira revela que, no nosso sistema, a leniência não tem servido a incentivar colaborações antes da existência de uma investigação.

No MPF, a 5ª CCR já homologou 32 acordos de leniência desde 2014. Porém, apenas um desses acordos adveio de uma colaboração espontânea de empresa que ainda não era investigada. Outros 15 acordos foram assinados pela Força-Tarefa Lava Jato em Curitiba, no próprio caso Lava Jato ou no caso Integração/Piloto. Todos esses, sem exceção, são acordos assinados por empresas que já estavam em investigação. Trouxeram fatos novos, mas não se trata de uma fonte primária de detecção da corrupção.

No caso dos 12 acordos até aqui assinados pela Controladoria-Geral da União (CGU), também apenas um acordo decorreu da colaboração de uma empresa ainda não investigada – trata-se da mesma empresa que também celebrou acordo com o MPF. Ao menos 10 desses acordos assinados pela CGU também guardam relação com investigações da Operação Lava Jato.

Esses dados nos permitem algumas conclusões. Em primeiro lugar, não temos tido números relevantes de denúncias espontâneas que levem a acordos, seja no MPF, seja na CGU. O acordo de leniência, e a legislação anticorrupção como um todo, não têm servido como fonte primária de detecção da corrupção. Creio que esse era um objetivo importante da legislação anticorrupção, e que não tem sido alcançado. Posso ilustrar a importância disso com um dado. Em 2018 o Grupo de Trabalho da Convenção Contra a Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou um estudo, com dados de 43 países, sobre fontes de detecção de corrupção[1]. Esse estudo demonstrou que 23% dos casos identificados no mundo partiram de colaborações espontâneas. Ou seja, praticamente ¼ dos casos no mundo teve essa fonte primária de detecção. Trata-se, portanto, de uma fonte muito importante, a qual nós estamos desperdiçando, sem a criação de incentivos suficientes para que aconteça.

Em segundo lugar, os acordos de leniência – e me refiro mais especialmente aos acordos assinados pelo MPF – têm sido importantes, sim, para a expansão das investigações. Mas nesses casos, a fonte primária tem sido as próprias investigações criminais, e o envolvimento das empresas em investigações prévias é que tem incentivado que tragam outros fatos ainda não investigados ao conhecimento das autoridades. E apenas porque as empresas e seus executivos já eram investigados criminalmente, no âmbito da Operação Lava Jato.

Como o Sr. avalia os resultados obtidos com acordos de leniência, no que se refere à promoção da justiça consensual?

Há inegável ganho para o interesse público na composição de disputas por meio do acordo de leniência. Sabe-se que uma ação de improbidade administrativa tem percalços gigantescos no Judiciário. Obtém-se com frequência a indisponibilidade de bens, mas a execução satisfatória de uma condenação é algo bastante raro quando se trata de grandes empresas e valores altos. Um estudo do CNJ em 2015[2] demonstrou que apenas 4% das ações de improbidade administrativa resultavam no ressarcimento integral dos prejuízos; 6% resultavam em ressarcimento parcial, e 90% não alcançavam nenhum ressarcimento. Na órbita administrativa, a aplicação da sanção de inidoneidade pode vir a ocorrer, mas tende a ser questionada judicialmente. A recuperação de valores mediante contencioso administrativo também é extremamente difícil.

Por outro lado, vendo-se os números dos acordos de leniência no âmbito federal, é possível constatar que o ressarcimento dos prejuízos causados ao erário tem sido muito mais efetivo. As 32 leniências homologadas pela 5ª Câmara do MPF somam 22.5 bilhões de reais em valores cujo pagamento já é objeto de acordo entre as partes – recuperação de valores consensual, portanto. Já os 12 acordos de leniência da CGU – conforme dados de sua página oficial – somam 13.5 bilhões de reais de valores a serem devolvidos aos cofres públicos.

Apenas vale uma ressalva de que os valores dos acordos da CGU e do MPF podem se compensar mutuamente – então não podemos somar os dois dados para chegar a um resultado final dos acordos. Mas é fato que os valores realmente recuperados pela atuação dos dois órgãos são estrondosos, e não encontram nenhum ponto de comparação com a recuperação de valores por meio do contencioso judicial ou administrativo – e tampouco pela atuação das cortes de contas.

Como o Ministério Público pode se encaixar na função de agente regulador por meio de acordos?

Como agente legitimado à assinatura de acordos de leniência, o MPF assume, até certo ponto, função de agente regulador do ambiente privado, na medida em que empresas poderão moldar suas condutas, inclusive a implantação de programas de integridade, a partir das orientações, diretrizes e práticas adotadas pelo MPF na avaliação de acordos de leniência.

Nesse sentido, o acordo de leniência pode servir como incentivo à implementação de programas de integridade nas empresas de duas formas: como orientação de condutas a serem adotadas de forma geral por empresas, um incentivo prévio ao compliance, ou mediante a imposição de um compliance a posteriori ou ex post facto, por meio de obrigações impostas no próprio acordo às empresas que praticaram atos de corrupção.

No primeiro ponto, como orientação e instrumento incentivador de condutas, a legislação anticorrupção como um todo atua – ou tenta atuar – para tornar mais efetiva a aplicação da lei. Então, por exemplo, quando a Lei Anticorrupção prevê a responsabilização objetiva das empresas por atos de corrupção, o objetivo é que as próprias empresas implementem medidas adequadas para evitar esses atos. E a medida mais festejada é o programa de integridade. Ainda, quando a Lei prevê que a empresa que tenha mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta poderá ter um desconto nas sanções caso venha a aparecer envolvida em um caso de corrupção, o objetivo é também incentivar a adoção de medidas preventivas pelas próprias empresas. É possível ver isso como um incentivo à autorregulação.

O segundo ponto diz respeito à adoção do compliance como obrigação imposta no próprio acordo de leniência, aplicável portanto às empresas não de forma preventiva, mas como uma tentativa de mudar a cultura empresarial. O MPF tem previsto como cláusula de seus acordos a comprovação da implantação de programas de compliance pelas empresas signatárias, nos termos do Decreto 8.420/2015, assim como, em alguns acordos, a obrigação de monitoramento independente por tempo determinado.

O MPF e a Controladoria-Geral da União divulgaram a celebração de acordos de leniência em conjunto. Como funciona essa cooperação?

Como se sabe, os primeiros acordos de leniência federais foram assinados apenas pelo MPF, no âmbito da Operação Lava Jato. Por uma série de razões, a CGU somente veio a assinar seu primeiro acordo em 2017. Mas a intenção do MPF nunca foi excluir a atuação da CGU, e por isso mesmo os acordos do MPF, mesmo os primeiros, já previam estímulos para que as empresas assinassem acordos posteriores, complementares, com a CGU e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

No momento, há duas frentes de atuação distintas na interação, cooperação e coordenação entre os órgãos: acordos que estão sendo negociados em conjunto pelos órgãos, desde as tratativas até a definição de valores e assinatura, e acordos que foram assinados inicialmente pelo MPF e somente depois pela CGU, mas que precisam ser compatibilizados.

No primeiro caso, desde que a participação conjunta dos dois órgãos seja de interesse da candidata a colaboradora, tem realmente ocorrido uma atuação coordenada, bem feita, com bastante boa fé de todos os lados. Em regra, o MPF detém maior conhecimento sobre os esquemas criminosos, e tem melhor capacidade de avaliar a utilidade e a completude das informações apresentadas pela empresa. A CGU, por outro lado, desenvolveu uma expertise e um método bastante elaborados para o cálculo dos danos a serem avaliados.

Uma vez que os órgãos têm esferas distintas de atuação – a CGU é órgão do Poder Executivo e seus atos podem ser avaliados pelo TCU; o MPF em sua atuação finalística submete seus atos à Câmara de Coordenação e Revisão e ao Poder Judiciário -, são assinados dois instrumentos distintos, que já nascem totalmente compatíveis entre si.

Esse modelo, que talvez acabe se mostrando o mais efetivo e o que trará maior segurança jurídica a todos os envolvidos, inclusive às empresas colaboradoras, não destoa, por exemplo, do que é feito nos EUA, em que também há autoridades distintas assinando acordos separados mas compatíveis – caso do Department of Justice (DOJ) e da Securities and Exchange Commission (SEC).

No segundo caso, quando acordos foram inicialmente assinados pelo MPF e apenas posteriormente pela CGU, tem sido necessário um esforço maior para compatibilizar os textos. O objetivo é conferir segurança jurídica aos acordos assinados. O pior resultado possível para um sistema anticorrupção é aquele em que a empresa que assina acordo de leniência fica em situação pior do que a que não assina. Se o Estado for o responsável por promover esse resultado, esse seria o maior desincentivo que poderia dar à efetividade de seus próprios mecanismos anticorrupção.

O trabalho nesse ponto, assim, é o de compatibilização das cláusulas dos acordos MPF e CGU. De forma exemplificativa, algumas previsões que demandam compatibilização dizem respeito ao seguinte: 1) os pagamentos já feitos de um acordo precisam ser reconhecidos e aproveitados pelo outro órgão; 2) o cronograma de pagamentos pode ser unificado; 3) a destinação dos valores às entidades públicas vitimadas e a ordem dos pagamentos pode ser uniformizada; 4) por fim, necessário reconhecer os efeitos dos acordos nas ações propostas pelos colegitimados.

Todos esses pontos têm sido ajustados a contento, o que demonstra os benefícios que essa atuação coordenada das instituições pode trazer para o sistema anticorrupção.

Na opinião do Sr., como pode ser aprimorada a sistemática da leniência no Brasil?

Embora recente a normatização dos acordos de leniência no Brasil, o país precisou avançar a passos largos com a necessidade de sua implementação, na prática, no âmbito da Operação Lava Jato. Porém, para que o interesse público possa se valer de forma perene do ganho resultante da efetiva realização dos três pilares que mencionei – como meio de detecção da corrupção, como promoção da justiça consensual e como regulador de condutas -, é necessário que o instituto se consolide para além da Operação Lava Jato.

Um segundo estudo da OCDE, específico sobre resoluções por meio de acordos, publicado em 2019[3], revela a percepção comum entre os países membros de que o incentivo para se chegar a um acordo somente existe quando as autoridades têm a capacidade real de aplicar a lei e impor sanções, e a alternativa ao acordo é a probabilidade de uma condenação. Esse incentivo ocorreu no âmbito das empresas envolvidas na Lava Jato, com o gigantesco manancial de provas angariadas e com a perspectiva real de punição, mas ainda não está claro se, fora desse fenômeno, haverá também o mesmo incentivo a que empresas façam acordos de leniência, tragam infrações ao conhecimento das autoridades, admitam sanções e ressarcimento dos prejuízos e implementem programas adequados de integridade.

Assim, o ponto mais relevante para o fortalecimento da sistemática da leniência vai além do próprio microssistema de enfrentamento à corrupção: é preciso tornar a aplicação da lei no Brasil mais certa e previsível, de forma a que as empresas envolvidas realmente percebam que é melhor adotar medidas preventivas internas para evitar a prática de atos ilícitos ou, quando não forem evitados, que promovam a autodenúncia às autoridades, sob pena de estarem envolvidas em investigações firmes sobre atos de corrupção, com possibilidade real de punição.

Pontualmente, outras medidas também trariam melhorias ao sistema. A consolidação dos mecanismos de cooperação interinstitucional, especialmente entre os órgãos legitimados à assinatura do acordo, tais como Ministério Público e Controladorias, traria ganho de segurança jurídica, tornando mais previsível a ação do Estado e, por consequência, diminuindo os riscos associados à colaboração espontânea de empresas com o Poder Público.

Ainda, o incremento nos parâmetros de desconto na multa acordada para os casos de implantação de programa adequado de integridade e colaboração espontânea antes mesmo da existência de qualquer investigação consistiria em forte incentivo com potencial regulatório às empresas. Nesse sentido, inclusive, vale mencionar a Medida n. 43 do conjunto de propostas legislativas chamado “Novas Medidas Contra a Corrupção”[4], que previa diminuição de até 50% no valor da multa, caso o programa de compliance fosse efetivo a ponto de a empresa detectar o ato de corrupção e comunica-lo às autoridades antes de qualquer investigação pública, ou de até 25% caso já houvesse investigação em andamento.

[1] Disponível em: <https://www.oecd.org/corruption/anti-bribery/The-Detection-of-Foreign-Bribery-ENG.pdf>.
[2] Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/0c9f103a34c38f5b1e8f086ee100809d.pdf>.
[3] Disponível em: <<https://www.oecd.org/daf/anti-bribery/Resolving-foreign-bribery-cases-with-non-trial-resolutions.pdf>>.
[4] Disponível em: <https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/asset/24:ucc-novas-medidas.pdf?stream=1>>.