EM FOCO

Ana Luiza de Sá

Opinião de Ana Luiza de Sá

Sócia do escritório Ana Luiza de Sá Advogados e Doutora em Direito Penal pela UERJ

abril, 2020

A palavra compliance se tornou popular pelo empresariado brasileiro e também nos círculos jurídicos em especial a partir de 2013, com a edição da Lei nº 12.846, passando a traduzir quase uma chancela de credibilidade àquelas pessoas jurídicas que não se preocupam única e exclusivamente em desfrutar das vantagens da livre iniciativa econômica, mas que também dedicam esforços e investimentos à garantir a conformidade de suas atividades ao ambiente regulatório, à prevenir desvios de conduta e à mitigar eventuais riscos.

Surgiu daí a figura do Compliance Officer, espécie de delegatário da função de agente garantidor primário do administrador empresarial, cujo real âmbito de atuação e de responsabilidade carece de segurança jurídica, em especial pela inexistência de dispositivos legais sobre a matéria, que na prática acaba sendo definida pelos guidelines do Departamento de Justiça Americano e pelas boas práticas de governança corporativa. Nada mais perigoso em se tratando da possibilidade de atribuição de responsabilidade penal a uma pessoa, que pela função desenvolvida, se espera seja um garantidor para evitar a ocorrência de um fato criminoso dentro da empresa.

E a situação pode se agravar em épocas como a presente, em que uma pandemia assola o mundo, modifica a rotina e a periodicidade da análise de riscos e altera todo o modo de se fazer negócio, trazendo ínsita a essa situação a possibilidade de práticas oportunistas de corrupção, dispensa irregular de licitação, fraude, desvios de insumos, lavagem de dinheiro e outros delitos relacionados ao incremento abrupto das operações, o que desafia a estrutura já estabelecida de controles internos.

Como exemplo, imagine-se que, neste momento de pandemia, um hospital que necessita adquirir material de EPI com urgência para atender o imprevisível aumento da demanda, e cujos fornecedores habituais, já previamente verificados por instrumentos de due diligence e de background check, não estão aptos a aumentar o volume de produtos necessários, forçando o hospital a emergencialmente contratar com outras empresas, disponíveis no mercado. E se posteriormente for verificado que as notas fiscais entregues não retratavam a realidade, ou que o depósito respectivo foi realizado na conta de terceiro com reputação duvidosa, sem relação com o fornecedor, em aparente situação de lavagem de dinheiro?

Sem pretender realizar qualquer aprofundamento sobre as circunstâncias que se acredita poderem, de fato, autorizar a imputação penal de um Compliance Officer na modalidade de agente garantidor, tal como possuir efetivo poder de veto das decisões empresariais, na prática é recomendado que produza evidências para demonstrar, mesmo em situações limites e caótica como a de uma pandemia, ter se cercado de todos os cuidados para evitar desvios de conduta, realizando, na medida do possível, incremento das análises reputacionais e testes das operações realizadas para aferir a sua regularidade.

Sem dúvida, a efetivação dessas providências dependerá não apenas da diligência e zelo do Compliance Officer, mas também da disponibilidade operacional e orçamentária dedicada aos esforços de compliance, além do próprio amparo fornecido pelo gestor, como destacado pela expressão tone from the top, esperando-se, por fim, que o Judiciário tenha sensibilidade para levar em conta todas essas dificuldades, originadas de uma situação calamitosa, nas futuras demandas criminais que certamente surgirão.