EM FOCO

Artur Gueiros

Opinião de Artur Gueiros

Coordenador Acadêmico do CPJM

agosto, 2020

Nomina sunt consequentia rerum (os nomes são consequências das coisas), dizia o frei Guilherme de Baskerville, personagem da obra prima de Umberto Eco. Nada é por acaso. Essa observação me faz lembrar a discussão linguística em torno do termo compliance e que palavra seria mais apropriada para utilizá-la no vernáculo. Qual seria o nome adequado para compliance?

De início, é preciso reconhecer que já se tornou enfadonho encontrar, nos inúmeros textos que tratam da matéria, a corriqueira menção de que compliance vem do inglês to comply... De todo modo, vale a pena recordar que a palavra é um substantivo que, na língua inglesa, tem o significado de estar de acordo com o comando, a regra, o requerimento ou o desejo. É interessante, ainda, saber que o verbo to comply veio da palavra latina complere, mesma matriz de onde também veio complire italiano, cumplir espanhol, e conformité francê.[1]

Em que pese a busca pelo correspondente linguístico, a doutrina fora da família do Common Law reconhece a força expressiva que a palavra comporta. Segundo Thomas Rotsch, a expressão compliance protagonizou uma carreira vertiginosa, pois há alguns anos atrás era algo em grande parte desconhecido, mas atualmente ao introduzirmos a palavra no Google aparecem 115 milhões de entradas, o que, levando-se em conta que não descreve nada distinto da evidência do dever de observância das normas é, de certo modo, surpreendente.[2]

De toda sorte, parte da doutrina prefere evitar o anglicismo, denominando as estruturas normativas que contemplam compliance como programas de cumprimento, programas de conformidade ou, ainda, programas de aderência.[3]

No Brasil, quando não se quer falar compliance, se utiliza, via de regra, as expressões cumprimento, conformidade ou integridade. Cumprimento decorreria justamente da proximidade linguística com o espanhol. No caso, utiliza-se do nome composto: cumplimiento normativo, conforme v.g. o art. 31 bis, do Código Penal da Espanha. Por sua vez, a predileção pela palavra conformidade parece possuir traços de galicismo: o programme de mise en conformité determinado para as empresas, por exemplo, no art. 764, da Loi Sapin II, sob pena de punição.

E qual seria a origem da palavra integridade? Aparentemente, teria sido uma escolha feita pela Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), que foi o primeiro diploma legal a prever diretamente a compliance entre nós. Ao tratar da dosimetria da sanção a ser imposta a empresa infratora, a Lei dispõe que devem ser levados em consideração, entre outros fatores, a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica (art. 7º, VIII). O seu diploma regulamentador, também adotou o termo integridade, utilizando-o por duas vezes (arts. 41 e 42, do Decreto n. 8.420/2015). A Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais), publicada logo em seguida, também repetiu integridade, como se lê do art. 9º, § 1º, ao se referir a instâncias internas responsáveis pela atualização e aplicação do Código de Conduta e Integridade.

Mas, por que o legislador escolheu integridade? Tentei descobrir, através da leitura da Exposição de Motivos do Projeto de Lei que originou a Lei Anticorrupção (PL n. 6.826-A, de 2010), a razão dessa etimologia. Não encontrei nada diretamente relacionado com o assunto. Dos diversos documentos que compuseram aquele projeto de lei, o que pude observar foi uma preocupação dos integrantes da Comissão Especial que tratou da matéria de se distanciar, tanto quanto possível, de qualquer palavra que pudesse se aproximar de um Direito Penal da empresa. Na ocasião, a expressão criminal compliance já era uma realidade, tanto no direito estrangeiro como nos debates travados no direito brasileiro e, naturalmente, no bojo da tramitação legislativa ocorrida no Congresso Nacional sobre a melhor forma de lidar com as empresas corruptoras.

Dessa feita, para desviar o foco de uma indesejada responsabilidade penal da pessoa jurídica (RPPJ), teria sido feita uma predileção linguística por um vocábulo que significasse algo positivo, mas que, ao mesmo tempo, guardasse uma distância segura das caudalosas correntes político-criminais que advogam a criminalização do ente moral, modelo no qual a compliance é o natural mecanismo defensivo tanto de prevenção como, no caso de haver uma infração penal, de mitigação ou isenção da respectiva sanção, conforme se observa na generalidade dos países. E o vocábulo escolhido, como dito, foi integridade.

É certo que há quem aplauda a opção do legislador. Por exemplo, Fernando Galvão prefere integridade ao invés de conformidade. Segundo ele, estar em conformidade com as leis, cujo significado se pode extrair do termo compliance, é menos do que ser íntegro. O termo integridade utilizado no contexto empresarial indica que a pessoa jurídica possui um sistema de valores éticos que a leva a promover relações justas e respeitosas com as pessoas e as demais instituições. A integridade é a qualidade de ser íntegro, que é harmônico em sua totalidade e essencialmente honesto.[4] Com todo o respeito e admiração pelo estimado Professor Titular de Direito Penal da UFMG, tenho certa prevenção com a palavra integridade, por conta da sua origem preconceituosa – nada a ver, claro, com o significado que atualmente possui.

Com efeito, integridade, substantivo feminino, provém do latim integritas. No famoso Diccionario da Lingua Portugueza, integridade significa a qualidade do ser inteiro: “a inteireza physica do corpo, ou todo, a que não falta parte alguma”. Em segundo lugar, em termo figurado, significa: “virtude do indivíduo integro; inteireza do juiz recto, incorrupto.” Por fim, integridade também pode ser “o complemento de cousa, a que não falta parte, ou requisito”, ou, ainda, “virgindade”.[5]

O próprio Umberto Eco denuncia a origem sectária da palavra. Segundo antigos relatos, aquele que não tinha um determinado padrão fisionômico de beleza, não era íntegro: “O inimigo deve ser feio, porque se identifica o belo com o bom (kalokagathia), e um dos caracteres fundamentais da beleza foi sempre aquele a que a Idade Média chamará depois de integritas, isto é, ter tudo quanto é requerido para ser um representante médio daquela espécie, pelo que, entre os humanos, serão feios aqueles a quem faltar um membro, um olho, os que tenham uma estatura inferior à média ou uma cor ‘desumana’.”[6]

Na minha opinião, o melhor vocábulo é conformidade. Nesse sentido, no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, conformidade é a qualidade do que é conforme ou de quem se conforma.[7] Ora, o objetivo maior dos programas de compliance é, justamente, o atuar conforme a legalidade, entendendo também por legalidade – nas palavras de Adán Nieto – o cumprimento de obrigações cíveis e diretivas internas da empresa.[8]

Dessa maneira, penso que agiu bem o Banco Central do Brasil que, por ocasião da edição da Resolução n. 4.595/2017, ao tratar da matéria não se preocupou com possíveis ligações com a RPPJ e utilizou indistintamente as palavras compliance e conformidade, como sinônimas: Art. 1º Esta Resolução regulamenta a política de conformidade (compliance) aplicável às instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil.

Na mesma esteira, o Projeto de Lei n. 5.442/2019, de autoria do saudoso Professor Luiz Flávio Gomes e do Deputado Rodrigo Agostinho, que tem por objetivo regular a chamada conformidade ambiental, justamente nos crimes de empresa. Consoante definido naquele projeto, programa de conformidade ambiental consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de conformidade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar, prevenir e sanar irregularidades e atos ilícitos lesivos ao meio ambiente (cf. art. 2º).

Em conclusão, reconhecendo que a polêmica é bastante extensa – não podendo, assim, ficar circunscrita nos estreitos limites de uma opinião –, acho que conformidade é a palavra que, na língua portuguesa, traduziria o significado da marcante expressão compliance. Se os nomes são consequências das coisas, penso que conformidade é o nome que melhor reflete o Direito Penal na era compliance.

[1] PRITTIWITZ, Cornelius. La posición jurídica (en especial, posición de garante) de los compliance officers. In Compliance y teoría del Derecho penal. Kuhlen, Lothar; Pablo Montiel, Juan; Urbina Gimeno, Íñigo Ortiz de (Org.). Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 208.
[2] ROTSCH, Thomas. Criminal Compliance. In www.indret.com, Barcelona, 2012, p. 1-3.
[3] Cf. ENGELHART, Marc. Corporate Criminal Liability from a Comparative Perspective. In Regulating Corporate Criminal Liability. Brodowski, Dominique et al. (Ed.). New York: Springer, 2014, p. 61.
[4] GALVÃO, Fernando. Teoria do Crime da Pessoa Jurídica. Proposta de alteração do PLS n. 236/12. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 147.
[5] SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo II. Lisboa: Borel, Borel e Cia., 1858, p. 213.
[6] UMBERTO ECO. Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais. Trad. Vaz de Carvalho. Lisboa: Gradiva, 2011, p. 15.
[7] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª ed. Curitiba: Positivo, 2004, p. 522.
[8] NIETO MARTÍN, Adán. Problemas fundamentales del cumplimiento normativo en el Derecho Penal. In Compliance y teoría del Derecho Penal. Kuhlen, Lothar; Pablo Montiel, Juan; Urbina Gimeno, Íñigo Ortiz (Org.). Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 22.