EM FOCO

Artur Gueiros

Opinião de Artur Gueiros

Coordenador Acadêmico do CPJM

maio, 2020.

No dia 15 de maio de 2020, a Nasa (National Aeronautics and Space Administration) divulgou os “princípios básicos para a convivência e trabalho na Lua”, conhecido como Acordos de Ártemis. O objetivo foi o de estabelecer as diretrizes gerais de como os humanos viverão e trabalharão no nosso satélite natural, com a previsão de “zonas de segurança” que cercarão as futuras bases lunares para evitar o que ela classificou como “interferência danosa” de países ou empresas rivais operando com grande proximidade.

Além disso, os Acordos permitem que a iniciativa privada possa dispor dos recursos lunares que vierem a explorar, p. ex., a conversão da água congelada em combustível de foguetes ou a extração de outros minérios para a construção de plataformas de aterrissagem e decolagem. Segundo noticiado, os Acordos compõem uma parte essencial do esforço da Agência para “cortejar aliados para seu plano de estabelecer uma presença de longo prazo na superfície lunar, em consonância com seu programa lunar Ártemis. ‘O arcabouço será usado como um incentivo para as nações aderirem às normas norte-americanas de comportamento no espaço’, disse o administrador da Nasa, Jim Bridenstine, à Reuters.” (cf. https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/2020/05/15/nasa-divulga-principios-basicos-para-convivencia-e-trabalho-na-lua).

A leitura dos Acordos de Ártemis (cf. https://www.nasa.gov/specials/artemis-accords/index.html) permite inferir a adoção de um modelo de autorregulação regulada no tocante a ocupação humana do solo lunar, tanto pelo setor público como pela iniciativa privada, tendo como ponto de partida a igualdade de gênero. Conforme os “princípios para um futuro seguro, pacífico e próspero”, por meio de Ártemis, a Nasa pousará a primeira mulher e o próximo homem na Lua em 2024, descortinando uma nova era para exploração e utilização do espaço. Os Acordos asseguram aos parceiros internacionais que se associarem com a Nasa, um papel fundamental na obtenção de uma presença sustentável e robusta na Lua, que servirá, também, para a preparação da histórica missão humana rumo a Marte.

Dessa maneira, com a participação de vários países e de corporações privadas realizando missões e operações no espaço cislunar, aquele documento considera essencial estabelecer um conjunto comum de princípios para governar a exploração civil e o uso do espaço sideral. Assim, as agências espaciais internacionais que se juntarem à Nasa deverão celebrar acordos bilaterais às cláusulas gerais de Ártemis, onde serão detalhadas a construção de um ambiente seguro e transparente que facilite a exploração e demais atividades comerciais, ao lado do desenvolvimento científico a ser desfrutado por toda humanidade, tudo em consonância com Tratado de Exploração e Uso do Espaço Cósmico de 1967 (aprovado, no Brasil, pelo Decreto n. 64.362/1969, cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D64362.html).

O documento ressalta, ainda, a “finalidade pacífica” de todo o projeto. Para a Nasa, a cooperação internacional em Ártemis visa não apenas reforçar a exploração espacial, mas também melhorar as relações pacíficas entre as nações. Portanto, no cerne dos Acordos de Ártemis está o requisito de que todas as atividades sejam conduzidas para fins pacíficos, em conformidade com os postulados do mencionado Tratado de Exploração de 1967.

Em respeito aos princípios que regem a boa governança corporativa, os Acordos de Ártemis sublinham a importância da “transparência”. Nesse sentido, a transparência é o marco fundamental para a exploração civil do espaço, razão pela qual a Nasa, ao adotar a política de apresentar publicamente seus planos, exige que os seus parceiros também observem esse princípio, apresentando ao público seus próprios planos de maneira transparente.

Outro ponto fundamental para garantir uma exploração espacial segura é a exigência da “interoperabilidade dos sistemas”. Interoperabilidade é a capacidade de um sistema (informatizado ou não) de se comunicar de forma transparente (ou o mais próximo disso) com outro sistema (semelhante ou não). Para um sistema ser considerado interoperável, é muito importante que ele trabalhe com padrões abertos ou ontologias (cf. https://www.diegomacedo.com.br/o-que-e-interoperabilidade/). Portanto, os Acordos de Ártemis exigem que os parceiros signatários utilizem padrões internacionais abertos, desenvolvam novos padrões, quando necessário, e se esforcem para apoiar a interoperabilidade na maior extensão possível.

A “assistência emergencial” é outro aspecto importante do documento. Isso porque, prestar socorro a quem precisa é a pedra angular de qualquer programa espacial civil responsável. Sendo assim, os Acordos de Ártemis reafirmam os compromissos da Nasa e dos parceiros sobre o resgate e/ou retorno de astronautas, bem assim o retorno de objetos lançados no espaço sideral, evitando-se, no último caso, o chamado “lixo” ou “detrito espacial” (sobre o assunto vide: https://exame.abril.com.br/ciencia/orbita-da-terra-ja-acumula-75-mil-toneladas-de-sucata/).

Os Acordos tratam, ainda, do “registro de objetos espaciais” e da “liberação de dados científicos”. No primeiro caso, o registro é considerado o pilar do ambiente seguro e sustentável no espaço para a realização de atividades públicas e privadas. Sem o registro adequado, torna-se inviável a ação coordenada para evitar interferências prejudiciais aos objetivos de convivência e trabalho na Lua. Sobre a disponibilização e compartilhamento oportuno, completo e aberto de dados científicos, aqueles que aderirem aos Acordos de Ártemis concordarão em seguir o exemplo da Nasa, divulgando seus dados científicos publicamente para garantir que o mundo inteiro possa se beneficiar das jornadas de exploração e descobertas de Ártemis.

A leitura dos Acordos de Ártemis demonstra o compromisso com parâmetros de boa governança e de integridade por parte da NASA e daqueles que desejam se associar ao projeto de ocupação lunar. Isso me fez lembrar da experiência traumática da NASA ocorrida em 28 de janeiro de 1986: a explosão do ônibus espacial Challenger, com a perda das vidas de sete astronautas, que foi objeto de profunda análise pela Prof. Diane Vaughan, no livro The Challenger Launch Decision: Risky Technology, Culture and Deviance at NASA (pub. University of Chicago Press, em1996).

Por intermédio da análise do relatório final da Comissão Presidencial instaurada para apurar as causas daquela tragédia, bem como das audiências realizadas pelo Congresso norte-americano e de entrevistas pessoais que ela própria realizou, Vaughan chegou a conclusão de que o acidente não foi causado por erros de cálculo ou equívocos de agentes individuais, como se supunha inicialmente, mas decorreu da má conduta corporativa – “Todos os sinais clássicos estavam lá: pressões de produção, assunção de riscos e violação de regras em busca de objetivos organizacionais e falha regulatória.”

Segundo Diane Vaughan, “nenhuma regra foi violada na véspera do lançamento; ao contrário, os gerentes estavam em compliance com as normas de segurança e procedimentos da NASA”. Contudo, ela observou que os problemas com os anéis dos foguetes de lançamento (O-Rings) foram sendo minimizados nos anos que antecederam ao episódio da Challenger, passando a ser repetidamente avaliados como um “risco aceitável” nos documentos de engenharia. Isso só foi possível por intermédio daquilo que a Professora denominou de “normalização do desvio” – uma vez tendo aceitado o desempenho anormal do O-Ring, o precedente tornou-se a base para aceitá-lo repetidamente. A percepção que se teve, foi a de que a “normalização do desvio” é um subproduto dos sistemas organizacionais e, naquela catástrofe, foi um erro decorrente justamente do compliance – “compliance com crenças culturais, regras e normas burocráticas da NASA”.

O tema foi posteriormente revistado em outro trabalho da Professora Vaughan – The dark side of organizations: Mistake, Misconduct, and Disaster (in Annual Reviews Sociology. Vol. 25, 1999, p. 271-305), permitindo o desenvolvimento da chamada “criminologia organizacional” que, em paralelo com a criminologia empresarial, busca investigar a etiologia dos desvios perpetrados por grandes e complexas corporações, a despeito delas possuírem um programa de compliance que, concretamente, não se apresenta eficaz para afastar ou minimizar os riscos decorrentes das atividades desempenhadas.

Por ocasião da publicação do livro de Diane Vaughan, a NASA se recusou a fazer qualquer comentário acerca das conclusões das suas investigações. Contudo, ao divulgar os termos dos Acordos de Ártemis, a Agência espacial parece ter assimilado muitas das críticas da Academia, reformulando, por completo, seus programas de compliance, boa governança e due diligence, bem como o processo de tomada de decisões no ambiente organizacional, compartilhando sua experiência não somente com as corporações objetivem firmar parcerias em seus projetos, como, igualmente, com aqueles que queiram viver e trabalhar na Lua.

Em síntese, encarar o compliance como o superficial atendimento de parâmetros regulatórios, box-checking routines ou exercício de treinamentos sem sentido (cf. SOLTES, Eugene; CHEN, Hui. Por que os programas de compliance fracassam e como corrigi-lo. In https://hbrbr.uol.com.br/compliance-como-corrigir/), é postura que precisa ser superada no ambiente organizacional. Antes de se tornar  alvo de “captura” pela burocracia da corporação, o compliance deve ter a sua efetividade mensurada, ser reavaliado criticamente, evitando-se a retroalimentação de desvios ou “normalização” de riscos, com critérios de transparência, interoperabilidade, além de outros que possam influenciar positivamente a tomada de decisão e o comportamento de terceiros.