EM FOCO

Cecilia Choeri

Opinião de Cecilia Choeri

Pesquisadora do CPJM

maio, 2020

As exigências de compliance vêm permeando diversas legislações que regem a atuação das organizações empresarias, dentre elas aquelas que cuidam das obrigações tributárias. Entretanto, nos últimos tempos, o compliance tributário tornou-se instrumento indispensável não somente para garantia da correção dos deveres do contribuinte, mas também como elemento de um programa de integridade efetivo, nos moldes exigidos pela legislação nacional, bem como os muitos acordos internacionais relativos as questões fiscais.

Na verdade, o compliance tributário não seria uma novidade. Isso porque há muito vem sendo exigido das empresas, pelos Fiscos em todos os níveis de Governo, deveres de comprovação do cumprimento das suas obrigações principais (que visam o pagamento do tributo ou penalidade pecuniária) e acessórias (ações que facilitam a arrecadação ou fiscalização dos tributos, como emissão de notas fiscais e preenchimentos de declarações). Ou seja, no sentido tradicional, ele se insere em um conjunto de medidas exigidas para a garantir conformidade das empresas nos processos rotineiros decorrentes de sua relação com o Fisco.

Mais recentemente, o compliance se tornou importante ferramenta tecnológica para o contribuinte assegurar o correto cumprimento das suas obrigações tributárias. A complexidade do ambiente tributário brasileiro, com uma grande diversidade de leis e atos normativos, bem como a forte adoção de meios eletrônicos para a apuração e recolhimento de encargos fiscais, torna indispensável a adoção de medidas de compliance tributário pelas empresas que desejem evitar os riscos de possíveis enquadramentos em infrações administrativas ou até mesmo infrações penais.

Atualmente, começou a ser forjada uma nova forma de relacionamento entre o Fisco e os contribuintes. Por um lado, as autoridades fazendárias começaram a perceber a necessidade de possibilitar que os contribuintes participem cada vez mais da formulação de normas tributárias, bem como de dar maior transparência e previsibilidade sobre a forma de interpretação da lei.[1] O contribuinte passou a ser compreendido como um importante ator na relação tributária, que não possui um fim em si mesmo – pois vai muito além –, tendo como função garantir aos cidadãos o exercício dos direitos sociais. O dever de pagar tributos é, assim, entendendo como uma decorrência natural da solidariedade social, uma vez que caberia a todos que compõem uma sociedade organizada contribuir para o seu financiamento.

O outro lado dessa moeda, é a demanda cada vez maior pelo Fisco de prestações ativas do contribuinte no interesse de auxiliar a administração fiscal. Nos dias atuais, além de sua função como contribuintes, as empresas desempenham também outros dois papéis: como sujeitos passivos e como administradoras ou gestoras de impostos. Assim, ao lado de serem oneradas como contribuintes, as empresas são também sujeitas a variados e complexos deveres fiscais que dizem respeito a manifestações da capacidade contributiva de terceiros (dos consumidores, nos impostos sobre consumo; de prestadores de serviço, nas hipóteses de retenção na fonte, etc). É em razão desse papel que muito autores falam  em um fenômeno da “administração privada” ou “gestão privada” dos tributos, decorrente de uma profunda mudança de função da própria administração tributária. Nesse sistema, cabe cada vez mais ao Fisco uma função de vigilância, facilitada enormemente pela evolução da tecnologia disponível, especialmente no Brasil. Todavia, em razão desse aumento na necessidade de controle posterior da aplicação das normas tributárias pelas empresas, o que se tem observado é um reforço nos poderes à disposição do Fisco para combate à evasão fiscal, eventualmente atingindo direitos, liberdades e garantias fundamentais dos contribuintes, como por exemplo, por meio da quebra do sigilo bancário e fiscal.

Em linha com esse papel mais ativo do contribuinte na sua relação com o Fisco, o compliance tributário tem se tornado mais do que uma necessidade para a empresa contribuinte. Cuida-se de uma demanda generalizada: desde acionistas, administradores e empresas tomadoras de serviço, passando por órgãos de controle e regulação, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) ou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), até os próprios agentes fiscalizadores.

No que toca especificamente a questão dos atos ilícitos contra a administração pública, cumpre notar que o Decreto n. 8.420/2015, que regulamenta a Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), ao elencar os parâmetros de avaliação do programa de integridade, destaca a importância das corporações manterem registros contábeis completos e precisos, além de controles internos que assegurem a confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiras. Ao lado de tais elementos de cunho contábil/financeiro, são considerados como parâmetros os procedimentos específicos adotados pelos contribuintes para prevenir fraudes e ilícitos nas diversas formas de interação com o setor público, dentre elas no pagamento de tributos. Vale dizer, o compliance tributário passou a ter uma importância para além da garantia do correto cumprimento das obrigações das organizações empresariais como contribuintes, funcionando, igualmente, como um dos elementos de um programa de integridade efetivo, capaz de prevenir e remediar ações lesivas aos poderes públicos, no âmbito da prevenção da corrupção.

Demais disso, há outro aspecto fundamental do compliance tributário. Com efeito, não é possível admitir que um programa de integridade seja capaz de demonstrar que conta com o comprometimento e apoio da alta direção da pessoa jurídica, bem como com o atendimento de padrões de conduta inscritos em elaborados código de ética e políticas e procedimentos de integridade compartilhados por todos os indivíduos em uma empresa, se o cumprimento dos encargos para com o Fisco são negligenciados pelos seus empregados e gestores. O mesmo pode ser dito, por exemplo, se a organização adota esquemas tributários abusivos, beirando o cometimento infrações de natureza tributária.

Dessa forma, o compliance tributário é parte importante da gestão ética da empresa, não meramente por garantir o cumprimento das suas obrigações tributárias, mas por assegurar a geração de recursos públicos, possibilitando o exercício de direitos sociais de forma solidária. Ademais, é um importante elemento dentro de um objetivo mais amplo de promoção de um ambiente organizacional que valorize a integridade, estabelecendo-se, a partir de mudanças do setor privado, uma nova, saudável e eficaz relação entre organizações empresariais e o poder público, com resultados positivos para toda a Sociedade.

Por tudo isso, pode-se dizer que o compliance tributário tem uma função muito mais abrangente do que apenas de garantia de cumprimento da lei tributária. Ele também tem a função de prevenção, detecção e remediação de condutas empresariais que possam vir a ser consideradas ilícitas. Nas hipóteses de ações tomadas no âmbito de planejamentos tributários, por exemplo, o compliance tem o importante papel de garantir que os relatórios contábeis e fiscais reflitam com veracidade as transações efetivamente realizadas pela empresa, com o objetivo de que não sejam consideradas fraudulentas ou de “fachada” pela fiscalização.

Em síntese, dentre outros objetivos, um programa de compliance tributário efetivo deve ser capaz de:

  • Assegurar o correto cumprimento das obrigações tributárias principais e acessórias, por meio da identificação dos tributos incidentes sobre as atividades da empresa, definição de uma agenda de pagamentos e entrega de informações fiscais e criação de processos para garantir o cumprimento de tais obrigações;
  • Garantir que relatórios contábeis e fiscais reflitam as transações efetivamente realizadas pela empresa, por meio de uma análise rigorosa e atualizada das leis tributárias e conhecimento das atividades da empresa por profissionais com experiencia profissional adequada;
  • Demonstrar o comprometimento e apoio da alta direção da empresa com ao programa de compliance tributário;
  • Garantir que seja feita análise periódica de riscos de natureza tributária em razão de mudanças na legislação ou nas atividades da empresa, a fim de realizar adaptações ao programa;
  • Assegurar que haja canais de denúncia de irregularidades em matéria tributária e que estas sejam efetivamente endereçadas;
  • Estabelecer procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito tributário;
  • Garantir que seja feita análise dos impactos fiscais decorrentes da contratação de terceiros, fusões e aquisições e operações internacionais;

Em conclusão, todas as estratégias que envolvem um program de integridade devem ser aplicadas também no âmbito das obrigações tributárias da empresa, garantindo sua atuação de forma ética e em conformidade com as leis.

[1] A propósito, cite-se a Lei n. 13.988/2020 (Lei do Contribuinte Legal) que, dentre outras mudanças, extinguiu o voto de qualidade, favorecendo o contribuinte no CARF. Cf. Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E: “Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.