EM FOCO

Consuello Alcon

Opinião de Consuello Alcon

Pesquisadora do CPJM

junho, 2020

A SEC (U.S. Securities and Exchange Commission) divulgou nesse mês ter pago recompensa no montante de 50 milhões de dólares a um único whistleblower (https://www.sec.gov/news/press-release/2020-126). No caso, o denunciante forneceu informações detalhadas, das quais a SEC não tinha conhecimento, sobre má conduta praticada por uma empresa em detrimento dos investidores. De acordo com divulgação realizada pelo CPJM, o “denunciante seria um trader do Bank of New York Mellon Corp. e teria colaborado com a SEC por mais de 10 anos (dois deles ainda como funcionário do banco) com informações a respeito de fraudes em contratos de câmbio”. As provas apresentadas resultaram em ação de execução que, exitosa, levou ao ressarcimento dos prejudicados.

Dito pagamento faz parte de programa de recompensas, estabelecido pela política de enforcement americana, quando um indivíduo auxilia na identificação e na coleta de provas da prática de infrações econômicas perpetradas por empresas, sem ter envolvimento com os delitos. Os denunciantes podem ser elegíveis para o prêmio quando fornecerem voluntariamente à SEC informações originais, ou seja, das quais a agência não tinha conhecimento, corroboradas por provas. Os prêmios pagos aos denunciantes podem variar de 10% a 30% do valor arrecado com a aplicação da sanção, quando exceder um milhão de dólares.

Ao que consta, esse foi o maior valor já concedido a um indivíduo no âmbito do programa de denúncia da SEC. Contudo, ele faz parte de uma sequência de casos considerados de sucesso pela agência, que informa ter concedido mais 500 milhões de dólares desde o início do programa, sendo 100 milhões de dólares somente no último ano fiscal (2019). A divulgação desses elevados números serve para reforçar o entendimento no sentido de os denunciantes terem se tornado uma “ferramenta” essencial na identificação, combate e reparação em casos de fraude econômica, e cuja utilização tem crescido nos últimos anos.

Esse programa de denúncias representa um exemplo do que o pensamento científico chama de sistema de “caçadores de recompensa” (bounty hunter), ideia antiga, cujo potencial de aplicabilidade se estende para todos os âmbitos da regulação (Crumplar, 1975). Historicamente seu surgimento teria ocorrido na Inglaterra, durante os séculos XIV e XV, período no qual o Reino carecia de capacidade de fiscalização, utilizando-se, assim, desse sistema como forma de compensação diante da regulação deficitária do poder público (Braithwaite, 2006). A notícia divulgada pela SEC me rememorou os estudos do professor australiano John Braithwaite sobre regulação, especialmente no setor tributário.

Isso porque a origem histórica do fenômeno levou Braithwaite a utilizar essa categoria em seus trabalhos de adequação da Teoria da Regulação Responsiva aos países de economia em desenvolvimento, cuja estrutura estatal parecia estar marcada pelo déficit de capacidade fiscalizatória. Para ele, as “redes” construídas por programas de recompensa confeririam ao Estado, em casos complexos, uma ampliação das capacidades de inteligência, coleta de evidências e, portanto, na própria identificação e condenação das fraudes. Segundo o criminólogo, tais modelos poderiam ser valiosos aliados em estruturas com reduzida capacidade de regular e processar. Todavia, ele alerta que em determinados sistemas políticos, com alta burocracia jurídica, tais oportunidades podem não ser tão bem aproveitadas (Braithwaite, 2006).

Nesse contexto, estratégia específica, proposta originalmente pelo professor Grassley (1998), foi retomada por Braithwaite (2006) para sugerir a utilização de recursos privados para executar parte do trabalho burocrático do setor de fiscalização de fraudes tributária. O sistema funcionaria por meio da publicização das declarações fiscais corporativas para que agentes privados pudessem realizar o trabalho de auditoria tributária e, na sequência, reportar às autoridades estatais os resultados das análises e eventuais problemas identificados. Nesse cenário, caso o resultado do trabalho da agência privada leve ao aumento do pagamento de impostos pela corporação, por exemplo, ela ganharia um percentual do valor arrecadado.

Outra consequência positiva desse modelo seria a utilização do auditor privado como elemento de reforço ao funcionamento da regulação responsiva na resposta estatal, controlando fiscais, promotores de justiça e reduzindo a incidência de corrupção e fraude (Ayres & Braithwaite, 1992, cap. 3). Na obra Restorative Justice and responsive regulation, Braithwaite sugere que seja dada ao Estado a possibilidade de adequar sua atuação no caso concreto, medindo a resposta a ser aplicada de acordo com a necessidade de maior ou menor intervenção frente as irregularidades. Essa atuação deveria ser estruturada por meio da conhecida “pirâmide regulatória”, escalonando-se a partir da justiça restaurativa (base da pirâmide), passando pelas sanções menos interventivas até alcançar as mais graves (topo da pirâmide, medida última e excepcional). A regulação responsiva seria justamente essa discricionariedade de decisão quanto à resposta a ser imposta, que se contrapõe ao sistema atual de regulação, mais formal e que determina de antemão as respostas cabíveis a cada infração, sem preocupar-se de circunstâncias que só o caso concreto pode apresentar.

Em tal contexto, o impacto positivo do sistema de recompensa ocorreria – creio eu – em razão do interesse do agente particular no cumprimento do acordado em um sistema de regulação responsiva, seja para verificar o cumprimento ou não pela corporação, seja para garantir a legalidade. Veja-se hipótese em que um funcionário público, atuando de maneira corrupta, acordasse o recolhimento a menor em benefício de uma empresa, momento em que o auditor privado, em razão do interesse na recompensa, fiscalizaria e exporia o problema, a fim de ter garantida a cobrança total devida ao Estado, recebendo o percentual que faria jus. Dessa forma, o agente privado auxiliaria na aplicação da regulação responsiva, garantindo legalidade em todo processo, bem assim o cumprimento das obrigações fiscais por parte da empresa infratora.

O (1) sistema de recompensa a denunciantes nos Estados Unidos, fortemente utilizado no âmbito da SEC, e o (2) sistema proposto por Grassley e Braithwaite, no âmbito da auditoria tributária, se associam ao incorporar agentes privados como forma de suprir déficits de fiscalização e detecção de práticas criminosas pelos poderes públicos. A ideia de se compor uma rede de integração entre agentes privados e estatais se faz ainda mais interessante no marco atual de adoção generalizada da autorregulação regulada e dos programas de compliance. Embora não esteja isenta de críticas, eu entendo que se constitui uma alternativa que merece ser refletida para, eventualmente, ser adotada no cenário regulatório brasileiro, com o fim de incrementar a capacidade de resposta para irregularidades corporativas.

Em síntese, às práticas bem-sucedidas na SEC se somam as evidências e construções no campo científico. Isso pode indicar que, ao invés de se insistir em ineficientes estímulos formais para arrecadação – a exemplo dos nossos intermináveis Programas Arrecadatórios adjetivados como “Refis” –, valeria a pena pensar na ideia de uma regulação responsiva em matéria tributária com integração de agentes privados nesse empenho, em particular diante do tamanho da dívida ativa com a União, estimada, em 2019, em valor acima de dois trilhões de reais.

Referências:
AYRES, I., & BRAITHWAITE, J. (1992). Responsive regulation: Transcending the deregulation debate. Oxford, UK: Oxford University Press.
BRAITHWAITE, John, Responsive Regulation and Developing Economies, World Development Vol. 34, No. 5, pp. 884–898, 2006 Ó 2006 Published by Elsevier Ltd.
CRUMPLAR, T. (1975). An alternative to public and victim enforcement of the federal securities and antitrust laws: Citizen enforcement. Harvard Journal on Leg- islation, 13, 76–124.
GRASSLEY, C. (1998). Floor statement of Senator Chuck Grassley: A historical treatise on the False Claims Act, 8 July 1998. Available from http://grassley.sen- ate.gov/releases/1998/p8r07-07.htm
Https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-03/dividas-com-uniao-passam-de-r-2-trilhoes-44-sao-irrecuperaveis.
Https://www.sec.gov/news/press-release/2020-126.