EM FOCO

Fernanda Ravazzano

Opinião de Fernanda Ravazzano

Pesquisadora do CPJM

agosto, 2020

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça há muito decidiram que o crime de apropriação indébita tributária (art. 2, inciso II, da Lei 8.137/90) não exigiria para sua configuração a presença do dolo específico, qual seja, o especial fim de fraudar a fazenda pública e assenhorar-se do valor. Bastaria, portanto, a vontade livre e consciente de não recolher o valor do tributo.

Nesse sentido, em Repercussão Geral em Recurso Extraordinário, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, a Corte Suprema, dentre outros pontos, reafirmou o entendimento no sentido de que a conduta do agente que, na condição de sócio-administrador da sociedade beneficiada, deixa de recolher, no prazo legal, valor de ICMS cobrado na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos, configura modalidade de crime contra a ordem tributária. Sendo assim, o “elemento subjetivo do crime descrito no artigo 2°, inciso II, da Lei 8.137/1990 é o dolo genérico, consistente no propósito de não efetuar o recolhimento do tributo devido aos cofres públicos, de modo que não se exige qualquer finalidade específica de agir”. [1]

Na minha opinião, o referido entendimento apresenta dois graves problemas: 1º a confusão entre conduta e dolo[2], havendo denúncias e mesmo condenações automáticas, quando presente tão somente a descrição da ação ou omissão; e 2º a criação de um critério objetivo para determinação da presença do dolo – elemento notadamente subjetivo – para ficticiamente se constatar a presença da consciência e vontade na apropriação do tributo.

Com efeito, a despeito da superada discussão acerca da não exigência de dolo específico[3], tornou-se prática comum o oferecimento de denúncias sem qualquer indicação da intenção de sonegar, limitando-se o órgão acusatório a descrever a conduta atribuída, e mesmo sem demonstrativo do dolo, ainda que geral, do acusado. Tornou-se igualmente comum decisões que compreendem que a mera descrição da conduta de não recolhimento do tributo seria suficiente para se “presumir” o dolo.

Na verdade, não se pode confundir ausência de dolo específico com autorização para a responsabilização penal objetiva do réu. Nesse sentido, não recolher o valor devido por dificuldades financeiras (mero inadimplemento) é completamente diverso de se ter o conhecimento do valor devido e, deliberadamente, optar-se por não o recolher.

A propósito, em Agravo Regimental em RHC, o Superior Tribunal de Justiça[4] teve oportunidade de reconhecer que existe uma diferença “inquestionável” entre aquele que não paga tributo por circunstâncias alheias à sua vontade (dificuldades financeiras, equívocos no preenchimento de guias etc.) e quem, dolosamente, não recolhe o tributo motivado por interesses pessoais (possibilidade de reinvestimento com maior retorno, vontade de se locupletar a custa do erário etc.).

Assim, quando a persecução penal estiver lastreada somente em um único mês de não recolhimento do imposto, cuida-se de circunstância que exigiria “cuidado redobrado” na avaliação do elemento subjetivo da conduta em tese delituosa. Ou seja, tem-se que a denúncia criminal deve indicar, “por fatos minimamente consistentes, a presença do elemento subjetivo do tipo”, razão pela qual a Corte Superior entendeu por dar provimento àquele agravo, trancando a ação penal movida por suposto crime contra a ordem tributária.[5]

Ocorre que, se, por um lado, o Superior Tribunal de Justiça destaca a exigência da demonstração do dolo neste julgado – e a nega em tantos outros – termina por fazer valer a compreensão da Suprema Corte que estabeleceu como critério objetivo a presença da conduta contumaz para presumir a presença do  dolo[6] [7].

Não haveria, por exemplo, conduta contumaz quando o sujeito, tendo declarado e descontado ou cobrado valor de tributo ou contribuição e, ao entrar em sérias dificuldades financeiras, (ocasionando inclusive a falência da empresa) termina por não repassar os valores ao Fisco[8]? Imagine-se essa situação em tempos de pandemia, quando tantas empresas estão à beira da falência… Penso que essa questão ganha contornos especialmente trágicos quando discutimos a compreensão da criminalização do não recolhimento do ICMS (lançamento e não repasse).

A boa dogmática nos ensina que não se pode estabelecer critérios objetivos para presumir elementos subjetivos e, mais ainda, há de se compreender que o crime de apropriação indébita tributária deve exigir o dolo específico para sua configuração. Dessa maneira, somente se demonstrando a intenção de ludibriar, fraudar, enganar o Fisco para ter ganho financeiro estará configurado, verdadeiramente, o dolo. Ou, conforme a palavra do Ministro Schietti, “o fim lucrativo”.

Em conclusão, sou de opinião que não se pode punir, de forma equivocada e desatendendo os princípios básicos do Direito Penal, quem, em um País com carga tributária tão alta, não consegue arcar com tal ônus.

[1] REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 999.425 SANTA CATARINA RELATOR : MIN. RICARDO LEWANDOWSKI RECTE.(S) :CARLOS ALFEU BUDANT E OUTRO ( A / S ) PROC.( A / S)(ES ) : DEFENSOR PÚBLICO -GERAL DO ESTADO DE SANTA CATARINA RECDO.( A / S ) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROC.( A / S)(ES ) : PROCURADOR -GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA.
[2] Inclusive as teorias mais recentes sobre o delito já deslocam o dolo e a culpa da tipicidade para a ilicitude, devido á impropriedade e confusão gerada entre a constatação da ação / omissão e a consciência e vontade na produção do resultado indevido (Cf. BUSATO, Paulo Roberto. Direito Penal Parte Geral. Atlas: São Paulo, 2013, p. 399-400)
[3] Malgrado, como será visto adiante, o Min. Schietti em seu voto no AgRg no RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 97903 – SC (2018/0104487-1) afirmou que “[…]Há uma diferença inquestionável entre aquele que não paga tributo   por circunstâncias alheias à sua vontade de pagar (dificuldades financeiras, equívocos no preenchimento de guias etc.) e quem, dolosamente, não recolhe o tributo motivado por interesses pessoais (possibilidade de reinvestimento com maior retorno, obtenção de maiores lucros etc.), me faz questionar se não estaremos retornando à discussão acerca da exigência da demonstração do especial fim para obter lucro ou enriquecer, sendo, inclusive, esta a nota diferenciadora do mero inadimplemento. E mesmo no julgamento no qual o STF compreendeu que o não recolhimento do ICMS (RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 163.334 SANTA CATARINA) configuraria o tipo penal em análise, o Ministro Luiz Fux destacou a necessidade de ter a intenção de fraudar o fisco, pontuando: “A decisão, quando o julgamento for concluído, deve ser aplicada com cautela. Só pode valer para o devedor fraudulento. Não se pode inviabilizar a atividade empresarial”(Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-14/criminalizacao-nao-pagamento-icms-exige-dolo-explica-fux#:~:text=A%20criminaliza%C3%A7%C3%A3o%20do%20ICMS%20declarado,feira%20(13%2F11).). Isso não seria a retomada da exigência do especial fim de fraudar o Fisco? Parece-me que sim.
[4] AgRg no RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 97903 – SC (2018/0104487-1) RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ. EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. APROPRIAÇÃO DO IMPOSTO DEVIDO. ELEMENTO SUBJETIVO. AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO MÍNIMA NA DENÚNCIA. ATIPICIDADE. TRANCAMENTO DO PROCESSO. IMPOSIÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. Para configuração do delito previsto no art. 2°, II, da Lei n. 8.137/1990 é necessário que a conduta seja dolosa, consistente na consciência (ainda que potencial) de não recolher o valor do tributo. Assim, somente se aperfeiçoa a figura delitiva em questão se a conduta de determinada pessoa transborda o mero inadimplemento fiscal, e ingressa na deliberada vontade direcionada à prática do crime contra a ordem tributária. Em outras palavras, impõe-se perquirir se a conduta reflete situação de sonegação ou apropriação, isto é, se houve o não recolhimento do tributo de forma dolosa, com o intuito de se obter algum benefício pessoal com os valores devidos ao Poder Público. 2. Há uma diferença inquestionável entre aquele que não paga tributo   por circunstâncias alheias à sua vontade de pagar (dificuldades financeiras, equívocos no preenchimento de guias etc.) e quem, dolosamente, não recolhe o tributo motivado por interesses pessoais (possibilidade de reinvestimento com maior retorno, obtenção de maiores lucros etc.). 3. Na espécie, a persecução penal é lastreada em apenas um único mês de não recolhimento do imposto, circunstância que, por si só, já impõe cuidado redobrado na avaliação de eventual conduta delituosa, à qual devem-se somar as demais peculiaridades que orbitam o caso concreto. Além disso, a imputação destaca que o referido valor, inscrito em dívida ativa, foi objeto de parcelamento, ao depois cancelado por inadimplemento. No campo da adequação típica, tal comportamento – que denota o desejo do acusado de recolher o valor devido – enfraquece a necessária consistência na delimitação do dolo, o qual não pode ser presumido pelo inadimplemento das prestações avençadas. 4. A denúncia deve indicar, por meio dos fatos minimamente consistentes, a presença do elemento subjetivo do tipo. Do modo como foi descrita, a conduta, ao contrário de amparar a acusação, serve como forte indicativo da inexistência do referido elemento subjetivo, notadamente porque não houve nenhuma outra descrição de circunstância de fato que se somasse às conclusões do Parquet quanto à configuração do dolo. 5. Decerto que a análise da presença ou não do elemento subjetivo do tipo, quando a controvérsia se situa no campo probatório, é incompatível com a via mandamental, consoante entendimento desta Corte. Entretanto, no caso específico dos autos, não há nenhuma necessidade de análise de provas ou de fatos, mas apenas a valoração dos fatos que foram descritos na denúncia, os quais não indicam a presença do dolo. 6. Agravo regimental provido para trancar o processo deflagrado contra o acusado.
[5] AgRg no RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 97903 – SC (2018/0104487-1). RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ..
[6] “Assentada a possibilidade do delito em tese, o relator assinalou que o crime de apropriação indébita tributária não comporta a modalidade culposa. É imprescindível a demonstração do dolo e não será todo devedor de ICMS que cometerá o delito. O inadimplente eventual distingue-se do devedor contumaz, este faz da inadimplência tributária seu modus operandi.” (Informativo 963)
[7] Digo critério objetivo, pois estaria automatizada a conclusão que o inadimplemento reiterado de tributos significaria que o Réu é devedor contumaz, e, dessa forma, atuaria com dolo.
[8] Discute-se a presença da inexigibilidade de conduta diversa, que não encontra posicionamento pacificado nos Tribunais.