EM FOCO

Guilherme Krueger

Opinião de Guilherme Krueger

Pesquisador do CPJM

agosto, 2020

Er nennt´s Vernunft und braucht-s allein,
Nur tierischer als jeder Tier zu sein[1]
Mefistofeles, de Goethe

No livro Ladrões de livros, Anders Rydell dá um retrato dramático da ambiguidade humana na Turíngia.  Berço do Estado democrático de bem estar social, foi também, logo depois, onde o nacional-socialismo logrou seu primeiro ensaio de governo:

[Uma] ideia romântica de devoção à beleza, de adoração da natureza, e de poesia se tornou um aspecto importante da autopercepção alemã. No entanto, ao mesmo tempo parecia haver uma nódoa negra nessa ideia. Como era possível que, dentro de poucas gerações, os herdeiros dessa ideia estivessem enforcando, torturando e assassinando pessoas exatamente nas mesmas florestas em que Goethe sentava para escrever poemas? Essa imagem, por um lado radiante e por outro cheio de trevas, já foi chamada de “dicotomia Weimar-Buchenwald” Esses dois aspectos formam um microcosmo do dilema alemão, a face de Jano da Alemanha.

Algumas décadas antes do advento da Alemanha moderna, Goethe deu feição a uma representação icônica dos alemães de seu tempo: Fausto.  A personagem é concebida a partir da memória de um vilão, Johann Georg Faust, cuja biografia restava envolta em lenda desde o crepúsculo da época medieval.  Na lenda, se manifesta uma audácia de saber que advém do abandono de uma atitude contemplativa de Deus pela autonomia em contratar com o Diabo.    Este personagem, antes de chegar à obra de Goethe, se insinuou no imaginário moderno, quando em 1587 houve a impressão de Johann Spies: Historia von Dr. Johann Fausten, também conhecido como Faustbuch; primeiro registro substancial da lenda e referência para a primeira obra dramatúrgica protagonizada pelo personagem, The Tragical History of Doctor Faustus, de Christopher Marlowe, publicada no início do sec. XVII.

A reviravolta dada por Goethe ao desfecho trágico das narrativas anteriores na segunda peça que escreveu para o protagonista será marcante pela prevalência da autonomia desejante numa destinação criativa sobre o destino sempre dado desde a criação heteronômica, a causa sui.  No Fausto finalmente refigurado por Goethe em 1832, o herói completa em sua personalidade e peripécia voltadas para o desfecho inventivo uma relação paradigmática entre vontade e inteligência humanas que se vinha se tornando típica do ideário moderno.  Porém, permanece no Fausto de Goethe a terrível ferocidade suprema do desejo humano por si mesmo, o que ele coloca na boca do demônio tal como transcrito na epígrafe deste texto.

Inventividade e desejo; vontade e sagacidade.  As vicissitudes nas múltiplas possibilidades do enredamento narrativo com o dispositivo desses pares duplicados como locanda do enredo (seu enquadramento sem qualquer fixação espaço-temporal de cena)  já eram notáveis nos antigos mitos gregos. Em particular, dois personagens míticos carregam este enquadramento nas suas narrativas: Prometeu e Sísifo.  É verdade que os gregos clássicos desconheciam a ideia de salvação.  Daí que as vicissitudes restem insuperáveis, o que é compatível com a estrutura necessariamente circular do tempo em todo mito.  Mas, a acuidade dos gregos nesse enquadramento das vicissitudes será determinante para a origem da democracia entre eles.

Essa determinação é perceptível só por uma visada transversal da cultura ateniense na época em que na cidade foi instituída a democracia.  Porque será necessário considerar que a origem da democracia seja indissociável de outra realização clássica dos gregos:  a dramaturgia trágica. A ágora grega designa o lugar das transações de mercado e de deliberação democrática.   E também de encenação da dramaturgia trágica.  Os gregos desconheciam a ideia de humanidade.  Daí que seja tão importante o deslizamento da narrativa mítica para a narrativa dramatúrgica, pois foi com as tragédias que os gregos encontraram expressividade para colocar os homens como preocupação em pensamento, o que dá conta da característica primária da democracia: os homens decidem entre si e estão ciosos disso.  Sintomático que na Oresteia de Ésquilo, o voto de Minerva tenha sido dirigido às Fúrias no contexto de uma assembleia deliberativa de homens que estava presa a um impasse.  E Sófocles irá conformar a preocupação de Ésquilo numa investigação nomológica, o que é patente no diálogo entre Antígona e Creonte no fim das vicissitudes dramatúrgicas enfrentadas pelos descendentes de Lábdaco e por essa linhagem ligados à fundação mítica da cidade de Tebas.  É sugestivo notar que a investigação nomológica já insinue também uma estrutura linear de tempo na trajetória dos descendentes; linha esta que vai escapando de um mito genético.

A investigação nomológica de Sófocles em Antígona e Creonte indicia a sua preocupação com a normatividade na democracia e se volta para a importância da dramaturgia trágica na contenção da ferocidade do desejo humano entre os gregos reunidos em assembleia.  A suspeita de que dramaturgia trágica, rígida em sua formulação perdia com a repetição seu efeito catártico e que a democracia fosse afinal incapaz de lidar com os desejos tomou uma expressão contundente no suicídio de Sócrates narrado por Platão e foi expresso exaustivamente no diálogo com Protágoras: se a ferocidade for polida, os desejos humanos tomam a forma de argumentos tão engenhosos como ardilosos.  Essa questão foi finalmente posta a nu por Nietzsche em sua Genealogia da Moral, na qual a vontade de poder vai se travestindo na vontade de verdade, cuja relação entre elas é encoberta pelo elogio à audácia de saber.

Correlacionando peripécias dramatúrgicas paradigmáticas da cultura ocidental à vivência do Direito em Ettersberg, pode-se suspeitar que nenhuma sofisticada atualização teórica das formulações teleológicas para o Estado Democrático de Direito será suficiente para prevenir uma perversão no manejo de ações persecutórias.  A eficiência delas é necessária, mas é prudente reconhecer que sempre será preciso mais do que uma teoria sobre a sua funcionalidade para justificá-las.

[1] Dá-lhe o nome de razão e a usa afinal/apenas para ser mais feroz que toda fera.
[2] Tradução de Rogério Calindo (São Paulo : Planeta do Brasil, 2018) , p. 61.