EM FOCO

Guilherme Krueger

Opinião de Guilherme Krueger.

Pesquisador do CPJM.

outras entrevistas e opiniões

dezembro, 2021.

Não há misericórdia sem correção”.  Com esta eloquência, o Papa Francisco anunciou em 1º de junho de 2021 a Constituição Apostólica Pascite gregem Dei, que promove a reforma do livro VI do Código Canônico (Das Sanções na Igreja), o que inclui a tipificação de delitos e respectivas penas.

O título do documento é uma referência bíblica (1 Pedro 5:2), cuja passagem é uma admoestação:  “Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, não por força, mas espontaneamente segundo a vontade de Deus, nem por torpe ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores sobre os que vos foram confiados, mas servindo de exemplo ao rebanho”.  É um apontamento para o caráter institucional e à dimensão humana/mundana da Igreja Católica Apostólica Romana.  A reforma realizada então se propõe a atualizar as normas penais do Direito Canônico conforme diretriz estabelecida desde o primeiro Papa.

Dentre as medidas de alteração se encontram as que repercutem o atual estado das artes do Direito Penal Econômico e respondem ao compromisso assumido pelo Estado do Vaticano, como subscritor da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida).  Neste sentido, a Constituição Apostólica se soma a uma série de medidas tomadas desde 2010, quando entraram em vigor as medidas do Vaticano para o combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo.[1]  Em 2013, veio à vigência a Lei XVIII, que consolida as normas de transparência, supervisão e informação financeira no Estado do Vaticano.[2]  Ela refletiu a Carta Apostólica sob a forma de Motu Proprio[3] de  8.08.2013 sobre prevenção e o combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa.  Em 15/11, outra Motu Proprio reformou o estatuto da Autoridade de Informação Financeira que fora instituído pelo Papa Bento XVI em 30/12/2010.  Essa reforma foi um desdobramento das conclusões a que chegou uma comissão formada em 24/06 e voltada para o Instituto para as Obras de Religião.

Na Motu Proprio de 19/05/2020 sobre a transparência, o controle e a concorrência nos procedimentos de adjudicação de contratos públicos da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano, o Papa Francisco fez menção à regulamentação específica e coerente no âmbito da Comunidade internacional no que tange às boas práticas de gestão.  E manifestou seu desejo de que o Vaticano estivesse alinhado.  Então, com a Carta Apostólica, entrou em vigência um conjunto de normas destinadas a promover a transparência, o controle e a concorrência nos procedimentos de adjudicação de contratos públicos estipulados por conta da Santa Sé e do Estado da Cidade do Vaticano. O Papa declarou estar definindo os princípios gerais e delinear um procedimento único sobre esta matéria, através de um corpus de regulamentos válidos para as várias Entidades da Cúria Romana, para as Instituições administrativamente ligadas à Santa Sé, para o Governatorato do Estado, bem como para as demais pessoas jurídicas públicas canônicas especificamente identificadas.   Trata-se, portanto, de uma normativa complementar ao Livro V do Código Canônico, que dispõe sobre os bens temporais da Igreja.  A especial Ordem dos agentes econômicos prevê medidas preventivas a condutas concertadas de concorrentes (formação de cartéis) e também a atos de corrupção envolvendo gestores dos recursos públicos pertencentes Vaticano e à Santa Sé. [4]

A Motu Proprio de 26/04/2021 dispôs sobre a transparência na gestão das finanças públicas.  Ela adota obrigações particulares para as pessoas que ocupem posições-chave nos Dicastérios da Cúria Romana, instituições da Santa Sé e do governorato do Estado da Cidade do Vaticano para prevenir e lidar com conflitos de interesse, práticas clientelistas e corrupção em geral.  O Papa se manifesta pela atualização do Vaticano, quanto aos padrões normativos que vão sendo adotados neste sentido pelos Estados laicos ao redor do mundo.

Em 1º/06/2021, houve no Vaticano uma conferência promovida pelo Conselho Pontifício para textos legislativos.  Falaram na oportunidade seu presidente, o Arcebispo Filipo Iannone e o secretário desse dicastério, Bispo Juan Ignacio Arrieta Ochoa de Chinchetru.  Coube a eles apresentarem a nova redação dada ao Livro VI do Codex Iuris Canonici (CIC).  O Arcebispo Iannone, no que diz respeito à matéria patrimonial, comentou que as mudanças havidas visam “pôr em prática, traduzir em normas, os princípios que o Papa Francisco recorda continuamente”. Ele mencionou que se tratam dos princípios da transparência na administração dos bens e da correta gestão da administração dos bens.  São punidos os abusos de autoridade, a corrupção — tanto o corrupto como o corruptor — a apropriação indébita, a má gestão do patrimônio eclesiástico. É punida também a atividade dos administradores que, para o próprio benefício ou para favorecer terceiros, gerem os bens sem respeitar as normas previstas.  Por sua vez, o Bispo Arrieta asseverou que os crimes patrimoniais foram tipificados como a alienação de bens eclesiásticos sem as devidas consultas; ou crimes contra a propriedade cometidos por negligência grave ou negligência grave na administração.  Além disso, tipificou-se nova infração para o clérigo ou religioso que, além dos casos já previstos, comete crime em matéria econômica – mesmo na esfera civil – ou viola gravemente as prescrições do Can. 285, §4, que proíbe clérigos de administrar bens sem a licença de seu próprio Ordinário.

O Papa Francisco, na Pascite gregem Dei, asseverou uma mudança de paradigma na adoção dessas normas: “não estamos vivendo uma época de mudanças, mas uma mudança de época”. 

[1] Disponível em https://www.vaticanstate.va/phocadownload/leggi-decreti/normativa-penale/NCXXVIILegge_sul_riciclaggio.pdf   Acessado em 16/06/2021

[2] Disponível em https://www.vaticanstate.va/phocadownload/leggi-decreti/normativa-penale/Legge%20N.%20XVIII.pdf   Acessado em 16/06/2021

[3] Esse tipo de documento é utilizado pelo Papa para fins legislativos e pode ser comparado ao Decreto-Lei.

[4] Para o pesquisador de Direito Penal Econômico , o documento de maior interesse deve ser o Tutela giurisdizionale in materia di trasparenza, controllo e concorrenza dei contratti pubblici della Santa Sede e dello Stato della Città del Vaticano.

Está disponível para download https://www.vaticanstate.va/it/stato-governo/legislazione-e-normativa/norm-penale-amministrativa.html .