EM FOCO

Guilherme Krueger

Opinião de Guilherme Krueger

Pesquisador do CPJM

outubro, 2020.

Como expus no texto anterior da série, “Padres do deserto” é uma expressão que designa um fenômeno histórico com o qual se pode estabelecer analogia ao tempo hodierno pelas sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir e de crise cultural em tensão com as de estabilidade, de continuidade e de coesão social. Outrossim, deram eles expressividade a essas sensações convulsivas através de um estilo: a apotegmata (breves narrativas em que lhes dá sentido um comentário atribuído a um padre do deserto).

A morte, claro, é um tema recorrente nos apotegmas. Ela é recorrente também hoje, mas sintomaticamente oblíqua através dos predicados saudável (perspectiva individual) e sustentável (perspectiva social). Digo oblíqua, porque hoje abordamos normalmente a morte como algo a ser prevenido e corrigido. Estamos “em luta contra” a morte; médicos “perdem” seus pacientes assim. Então, como é evidente para unidades complexas de carbono e hidrogenação catalítica, formamos um exército sitiado pela morte. E que já sabe: todos nós perderemos a vida nesta batalha, mas mesmo assim devemos resistir. Pelo quê?! A felicidade ainda a ser buscada, mas que, neste estado de sítio, nos escapa.

Desprovidos de pensamento crítico, não há enfrentamento do tema: os apotegmas dissociam da morbidez sua alusão direta à morte. O que isso pode dizer sobre o compliance? A morbidez como sintoma estilístico do enfrentamento temático contemporâneo tende a retratar a morte como um algo voraz, disfuncional e implacável. A morte assim retratada é liberdade despersonificada. Trata-se de uma projeção da performance vazia de significado. Como resposta, a vida humana autonômica, típica concepção humanista, corresponde a uma liberdade performática contida pela normatividade.

As sociedades democráticas de mercado se lançaram à aceleração das inovações tecnológicas. Numa abordagem patológica, um dos sintomas mais evidentes da febre performático-produtiva que lhes é rebento. E com isso trouxeram consigo um perigo que hoje lhes testa a resiliência: a normatividade inflacionária de marcos regulatórios da qual o compliance é colateral. Quanto mais o sujeito de direito for livre de qualquer heteronomia, maior o volume de normas positivadas que regulam essa liberdade. Eis o paradoxo da liberdade coercitiva em expansão.

Não se trata de negar o caráter incontornável das práticas de compliance na ordem econômica. Mas, tampouco é incontornável a necessidade de uma compreensão patológica de qualquer funcionalidade. Por exemplo, a patologia numa pandemia só se completa com a análise funcional dos processos bioquímicos do seu vírus patogênico.

Quero então apontar isso: o excesso de funcionalidades normativas que tomam forma de violências neuronais, dos quais o transtorno do burnout é um sintoma, constitui um limite hipotético para as políticas de compliance.