EM FOCO

Guilherme Krueger

Opinião de Guilherme Krueger

Pesquisador do CPJM

junho, 2020

                                                                                                                                    Confesso-me culpado de haver cotado
                                                                                                                                    a questão de culpa e inocência
                                                                                                                                    acima da questão de utilidade e nocividade

                                                                                                                                                                        ARTHUR KOESTLER
                                                                                                                                                                   em O Zero e o Infinito

A sessão extraordinária de julgamento do CADE realizada no dia 28/05/2020 levou à pauta única o processo nº 08700.002395/2020-51 para a apreciação prévia de um acordo horizontal de cooperação em contexto econômico excepcional (decorrente do impacto severo das medidas sanitárias impostas na contenção da pandemia viral causada pelo agente COVID-19).  Foi então homologado o Despacho nº 529/2020  da Superintendência-Geral do CADE pelo que a autoridade antitruste reconhece, debalde falta de detido exame (o que seria oportuno numa conjuntura normal), não existirem indícios de prática anticompetitiva por meio das medidas elencadas no Memorando de Entendimentos apresentado por empresas concorrentes na indústria de alimentos; medidas essas voltadas para agregação de eficiências no fornecimento de seus produtos a estabelecimentos comerciais de varejo que estão muito vulneráveis aos efeitos econômicos deletérios do isolamento sócio-biológico generalizado imposto como medida sanitária cogente.  Dada a urgência da iniciativa, o CADE avalizou o Memorando de Entendimentos, mas resguarda-se na prerrogativa de revisitar seu posicionamento em momento posterior ante o indício de cometimento de quaisquer atos que ensejem a apuração de infração à ordem econômica.  Para isso, determinou às interessadas que apresentem ao Cade, sempre que requisitadas, todas as informações acerca da cooperação de que trata o Memorando de Entendimentos, bem como, ao final de sua vigência de curta duração, relatório circunstanciado contendo as medidas adotadas, as informações trocadas e os resultados obtidos.

Notável neste processo de que o Memorando de Entendimento não se enquadre em qualquer uma das hipóteses de Lei previstas para notificação prévia do CADE como ato análogo ao de concentração.  Mesmo assim, o CADE não se eximiu de manifestar-se com eficácia, ainda que para isso tenha adotado um procedimento não previsto em seu Regimento.  De um lado, agentes empresariais de grande porte cuidaram da transparência e primaram pela prudência em conformidade à legislação concorrencial para além do mínimo legal exigível e, de outro, o CADE correspondeu a essa iniciativa de excelência, ciente que seu papel republicano não se limita ao cumprimento obtuso de suas atribuições legais.

Trata-se de caso de efetividade da cultura de integridade numa iniciativa de algumas das maiores organizações globais na indústria da alimentação em território nacional.  Pode-se ressalvar que seja uma iniciativa pontual e propositalmente se quer expô-la como íntegra.  Mas, o pleno domínio técnico para produzir uma ação íntegra  é indicativo da integridade como valor já culturalmente internalizado.  Em todo caso, a iniciativa evidencia como a reputação dos agentes econômicos se coloca no foco das suas preocupações com a conformidade legal e a integridade moral. Bem como mostra a efetividade dessa estratégia na receptividade franca que o gesto de submissão teve como resposta dada pela autoridade antitruste.

Sem nenhum pejo da erraticidade desta análise, correlaciono o acontecimento em sede do CADE à narrativa memorável de Arthur Koestler. Publicado em 1940, O Zero e o Infinito é construído a partir dos diálogos entre Rubachov, Ivanov e Gletkin no contexto dos expurgos ocorridos na União Soviética.  A ausência da tortura e da chantagem nos interrogatórios que Ivanov e Gletckin submetem a Rubachov, um bolchevique desgraçado por Stalin, é uma opção literária que expõe uma perplexidade: o compartilhamento de uma visão da história (como processo cognoscível e de destinação à felicidade futura da humanidade) justifica a produção de verdades relativas, a imunidade delas a crítica, a abstração de qualquer contradição nas convicções pessoais e uma ética de submissão.  A inflexibilidade na razão historicista culmina na decisão de Rubachov em abraçar livremente a sua paixão: ele assina uma confissão completa que falsamente lhe imputa crimes de traição contra o regime soviético.  E o faz como sua derradeira contribuição à conquista da utopia.

São os contextos políticos e escalas do perigo tão distintos que qualquer correlação parece um despautério.  Mas, recorrerei ao método de caso para indiciar que essa distinção de contexto e escala não distancia tanto assim uma situação da outra ao ponto da total impossibilidade de comparação razoável.

Recentemente, estamos vendo o lugar de fala se aproximar do Direito Penal pela via do racismo.  Em termos lógicos, o lugar de fala é uma variante do argumento de autoridade.  Conquanto o conceito carregue da psicanálise a ideia de objetalidade distinta da objetividade.  A objetalidade é uma condicionante de toda objetividade.  Na medida em que qualquer observação objetiva já seja dependente do amadurecimento da personalidade em coexistência ao ambiente e a outrem desde a infância.  É esta objetalidade que a expressão privilégio carrega como alusão às assimetrias dos lugares de fala.  É esta assimetria das circunstâncias sociais em que se dá o amadurecimento das personalidades que poderá responder pela percepção e compreensão das estruturas do racismo. Ou melhor, dos racismos.

Até aqui, tudo está restrito ao campo da psicologia social na escuta dos sentidos emergentes em perspectivas marginais acerca da ordem jurídica.  A inflexão é exatamente a criminalização do racismo.  Porque, se o lugar de fala afirma uma assimetria na constituição da crença do que seja verdade acerca de um racismo, qual será a integridade da honradez a ser defendida por quem esteja no lugar do privilégio?  Em questão não está somente o crime de racismo.  Mas, também, a calúnia.    Havendo a assimetria de lugares na atribuição de práticas criminosas, parece que a única forma de preservar a integridade moral no lugar do privilégio será a submissão ao imperativo ético advindo do lugar de fala.  Então, pululam os atos públicos de autocrítica num lugar de privilégio a toda denúncia de racismo estrutural formulada num lugar de fala.  O que está em jogo é a reputação.

Só que a verdade em uma crença só poderá ter garantia de não ser fruto do mero acaso pelas condições lógico-gramaticais de sua expressão.  Qualquer imputação não é mera questão de opinião baseada nesta ou naquela vivência, mas de demonstração argumentativa de que o significado de um ato praticado não possa ser outro a não ser a prática de um crime.  O duplo não desta formulação não é ocioso.  É ele o operador modal das condições de verdade a serem observadas.  Não é criminalmente condenável uma prática, se for racismo. Mas, se e somente se for racismo.  Inescapável: num lugar de fala está um agente doxástico.

A justificação de uma crença depende sempre de quão boa seja a evidência de que dispõe. Isso, porque pressupõe que agente doxástico tenha posse consciente de suficientes razões para crer que conhece uma verdade. Torna-se uma necessidade: saber que sabe o porquê de uma proposição ser verdadeira.  A consciência é a perspectiva do sujeito que conhece.  Como a consciência é sempre consciência de algo; e essa relação é sempre amadurecida desde a infância, há algum horizonte histórico-social (imaginário instituinte) em qualquer consciência de algo.    E é necessário que haja algum tipo de acesso consciente ao conteúdo da experiência (vivência) para que um determinado sujeito cognitivo obtenha justificação. A singularidade epistemológica é que seres humanos, na sua condição biofísica, têm experiências e também podem ter consciência das mesmas (evidências); mas, além disso, emprestam algum significado à sua experiência (imaginam), o que imediatamente traz à epistemologia a necessidade em lidar com a compreensão da experiência para a consciência de algo. A compreensão das experiências se mostra então como um requisito de fundamentação da crença como uma verdade provável.  Ou seja, boas evidências (uma consistência, justificação não inferencial) são necessárias, mas não são suficientes para uma justificação da crença pelo agente doxástico. Essa justificação demanda coerência interna (justificação inferencial).  Esta coerência interna, no entanto, remete a uma hipótese interessante: a ressalva de consciência. Restará uma justificação proposicional na medida em que o agente compreende as relações entre consistência e coerência para o conhecimento, mas por desconfiança não experimenta acreditar naquilo que estará justificado como verdade.  Pode apresentar-se aí não necessariamente uma recusa disfuncional, mas talvez uma mutação do processo de conhecimento.  No limite, o problema conduz ao extremo do ceticismo ou, antes deste limite, à verificação das condições de verdade para que a epistemologia possa dar conta das mutações no processo incremental do conhecimento a partir da cumulação das evidências.

O que tem a ver este caso com a mui louvável decisão do plenário do CADE em 28/05/2020?  A ressalva de consciência torna sempre problemática relação entre ordem e submissão.  Mesmo no ambiente democrático e ainda que assuma um caráter inegavelmente estratégico, a reputação, em termos de memória afetiva dos stakeholders, não deve ser o conceito chave de orientação moral para as iniciativas republicanas.  Pelo reconhecimento da relação objetal em toda presença ôntica (pão é pão; queijo é queijo), admissível que o consenso possa ser enganoso quanto à verdade dos fatos, sobretudo quando forçado por cálculos de estratégia e utilidade.  O consenso excessivo fragiliza o fundamento da Democracia, que precisa manter em sulco o traço marginal da insubmissão em sua ordem jurídica.   Pois neste sulco verte a ressalva de consciência; e no seu transbordamento da epistemologia para a política, é como o húmus para própria Democracia.  Este húmus é o mundo da vida em que se sobrepõem a lógica e a ética para a verdade numa crença porvir.