EM FOCO

Guilherme Kruger

Opinião de Guilherme Kruger

Pesquisador do CPJM

agosto, 2020

“Padres do deserto” é uma expressão que designa um fenômeno ocorrido durante a dissolução da civilização romana cristianizada e aluvião das tribos pagãs.  Há algum paralelo entre o que vivemos hoje e o que aconteceu há mais de um milênio e meio atrás.  Para os cidadãos de então, como nós, havia sensações de insegurança quanto ao modo de vida conhecido, de incerteza sobre o porvir e de crise cultural que predominavam sobre as de estabilidade, de continuidade e de coesão sociais.

Esses “padres do deserto” deram expressividade a essas sensações convulsivas como nenhum outro modo de pensar foi capaz até hoje.   Esta expressividade nos foi legada através dos apotegmas, que são pequenas estórias nas quais uma frase atribuída a um padre do deserto lhe dá sentido.  Historicamente, esses “padres do deserto”, pelo exemplo de vida e ensinamento, criaram o modelo das regras monásticas, tão importantes que foram para a preservação da memória civilizatória ao longo dos séculos de diluição proporcionada pelas chamadas “invasões bárbaras” às então correntes relações sociais citadinas; choques culturais em tempos de intensos fluxos migratórios num mundo conhecido como tal.  Aliás, nenhuma imagem talvez capte tão bem estabilidade do que a de um mosteiro milenar encarapitado no alto de um penhasco.

A linguagem usual sobre ética nos treinamentos em compliance parece ser tributária de uma ideia de “salto para cima”.  Que haja um estado ético culminante a ser aspirado pela organização social com o propósito de preservação de sua boa reputação.  Não faltam apotegmas que coloquem em xeque a sinceridade e a autenticidade de propósitos moralizantes apresentados como metas voltadas à própria reputação.   Os “padres do deserto”, quando falam de estabilidade, não dizem que ela esteja numa aspiração bem intencionada de algo proposto para além. Mas, em autossuportar, num sentido muito mais psicanalítico (cuidado de si) do que de desempenho performático:  “Filho, se queres ter proveito, permanece em teu próprio claustro, presta atenção em ti mesmo e em teu trabalho manual.  Pois, ao sair por aí não teria o mesmo progresso profícuo que no silêncio presente de seu lar.[1]

Esta estabilidade no permanecer silenciosamente imóvel, que parece tão díspar do falatório preconizado pelos treinamentos de compliance a guisa de comunicação (ou pior, de transparência), está diretamente associada à anacorese.  Esta palavra hoje é polissêmica, utilizada desde a biologia até a teologia.  Mas, todos os empregos guardam em comum a noção de tornar um corpo resistente às externalidades.  Daí que se ligue “padres do deserto” ao estereótipo de anacoretas: santos velhotes e magrelas; de barba hirsuta e cabeleira selvagem.  O que remete imediatamente às práticas de ascese.  Que são rotinas austeras no cuidado de si.  Aqui e agora a cada vez que seja… aqui e agora.

Os anacoretas de antanho então nada teriam a dizer sobre compliance, além do abanar das suas cabeças, descrentes nas boas intenções apregoadas por empresas zelosas da própria reputação?  Sim.  Têm o que dizer.  Em especial, aqui, quero apresentar algo muito prático, próprio da ascese e que tem afinidade com o complianceHypomnêmata.  Parece grego.  E é.  Mas, para quem vive enfiando palavras em inglês no vernáculo pra falar de… compliance, a expressão pode ser até estranha num primeiro momento, mas será um indício de hipocrisia, se recusada desde já por indigesta.

Hypomnêmata nada mais é do que registro de rememoração.  Mas, não num sentido de narrativas autobiográficas significativas do tipo “meu querido diário…”  O termo remete à contabilidade antes mesmo que esta existisse; mais se parece a anotação de caderneta, ou seja, escrita  “crua” de fatos cotidianos, mas que, ao serem relidos em conjunto e em voz alta, soam de alguma maneira.  Este “soar” é a questão crucial que associa a prática ascética no uso da hypomnêmata desde a fundação dos mais antigos mosteiros no mundo ocidental às rotinas de conformidade que se esperam das empresas para que elas presenteiem as comunidades que impactam com sensações de estabilidade em tempos de insegurança retroalimentada pelas altas performances apregoadas como passos decisivos rumo à consumação de projetos pretensiosos, mas que se nos requisitam empatia por tomarem o nome de “sonhos”[2].

[1] Apotegma 878.  Apophthegmata Patrum Aegyptiorum. Em The Sayings of the Desert Fathers.  Trad.  Benedicta Ward.  Kalamazoo : Cistercian Publications, 1975.  p. 227.

[2]      A stultitia [em Sêneca, veja cartas a Lucilius  t. II, livro V, carta 52. §§ 1-2. ps. 41-42.] se define pela agitação da mente, pela instabilidade da atenção, pela mudança de opiniões e vontades, e consequentemente pela fragilidade diante de todos os acontecimentos que podem se produzir; caracteriza-se também pelo fato de dirigir a mente para o futuro, tornando-a ávida de novidades e impedindo-a de dar a si mesmo um ponto fixo na posse de uma verdade adquirida.  A escrita dos hupomnêmata se opõe a essa dispersão fixando os elementos adquiridos e constituindo de qualquer forma com eles “o passado”, em direção ao qual é sempre possível retornar e se afastar. Essa prática deve ser encadeada a um tema muito comum na época; de qualquer maneira, ele é comum à moral dos estoicos e à dos epicuristas: a recusa de uma atitude de pensamento voltada para o futuro (que, devido à sua incerteza, suscita a inquietude e a agitação da alma) e o valor positivo atribuído à posse de um passado, do qual se pode gozar soberanamente e sem perturbação. A contribuição dos hupomnêmata é um dos meios pelos quais a alma é afastada da preocupação com o futuro, para desviá-Ia na direção da reflexão sobre o passado.

FOUCAULT, Michel.  A Escrita de Si. Em Ditos e escritos V. Ética, sexualidade, política. MOTTA, Manoel Barros da (Org.). trad.: Elisa Monteiro; Inês Autran Dourado Barbosa.  Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. v. 5. 144-162