EM FOCO

Humberto Tostes

Opinião de Humberto Tostes.

Pesquisador do CPJM.

outras entrevistas e opiniões

março, 2022.

Em 10/03/2022 a Vale S.A. divulgou o seu “1º Relatório Anual do Programa de Ética & Compliance”. O documento compõe a denominada “3ª Linha de Defesa”, parte do Programa de Gestão de Riscos da companhia, o qual visa atender às regras do Comitê de Auditoria regulado pela CVM e pelo Regulamento do Novo Mercado[i].

Entre denúncias, consultas e reclamações, o canal de comunicação da companhia recebeu 6.248 relatos em 2021, dos quais 3.014 ensejaram ações corretivas, incluindo a demissão de 157 empregados[ii], números significativamente superiores aos 4.760 relatos e às 2.261 ações efetuadas em 2020[iii]. Conforme divulgou a mineradora, 41,4% desses relatos foram apurados e confirmados – cerca de 2.586 casos –, sendo 47,8% referentes à relações interpessoais – por volta de 1.236 casos –, 7,8% à fraude – quase 201 casos – 3.3% à segurança corporativa – em torno de 85 casos – e apenas 1% ao meio ambiente – aproximadamente 25 casos[iv].

Por desenvolver atividades evidentemente de risco e com possíveis consequências em vulto de verdadeira hecatombe, chama atenção o fato de que as comunicações referentes aos recursos humanos foram quase 15 vezes maiores às tangentes à segurança de estruturas e praticamente 50 vezes maiores às concernentes ao meio ambiente. É certo que o compliance laboral tem sua importância e que posturas reprováveis no ambiente de trabalho precisam ser combatidas, porém é de se estranhar a inexpressiva utilização do Canal de Denúncias de uma empresa com 29 barragens de mineração em estado de emergência[v] – 3 em situação de ruptura iminente – para abordar questões de suma importância para a sociedade como um todo e, até mesmo, para o planeta.

Os números acima expostos, possivelmente, apontam para plausíveis falhas na implementação do programa de enveronmental, social and corporate governance desenvolvido pela companhia, o qual, aparentemente, não fomenta ou oportuniza, ao menos não de forma significativa, comunicações relativas à segurança e aos danos decorrentes de sua atividade econômica. Acentua a relevância de tal indicação a nova normativa da Agência Nacional de Minerção, trazida pelos arts. 19 a 32 da Resolução nº 95, de 7 de fevereiro de 2022, que confere às próprias mineradoras a responsabilidade pelas Inspeções de Segurança Regular e Especial de barragens, devendo-as avaliar as condições de segurança e de operação das estruturas e, posteriormente, repassar tais informações à autarquia responsável pela fiscalização[vi] – sistemática de “autofiscalização” em que, ocasionalmente, denúncias internas podem ser a única forma de se tomar ciência de situações críticas antes que se tornem irreversíveis.

Outrossim, além da transferência de parte importante do monitoramento das estruturas relacionadas à mineração para os responsáveis pela atividade lesiva ao meio ambiente, importa ressaltar que, como consta no “III Relatório Anual de Segurança de Barragens de Mineração 2021”, a Agência Nacional de Mineração não possui quadros com dedicação exclusiva em número suficiente para averiguação da segurança de barragens, contando com “servidores que receberam algum nível de treinamento para auxiliar nas atividades de fiscalização de barragens”[vii]. A conjuntura em comento toma ares mais preocupantes em contraste com episódios ocorridos na Vale S.A., como quando o então presidente, Fabio Schvartsman, 14 dias antes do rompimento da barragem de Brumadinho, manipulou e pressionou os órgãos da empresa a fim de descobrir a identidade e demitir whistleblower anônimo que delatou a necessidade de mudanças na companhia para que “condições mínimas de operação segura para pessoas e instalações fossem garantidas”[viii].

Nessa senda, não se pode aceitar meras estratégias de pinkwashing e de greenwashing, levianas atenções momentâneas às demandas do mercado com o fim de ampliar os lucros e melhorar a imagem da empresa – sem necessariamente mitigar riscos e danos vindos de sua atividade –, como se programas de integridade fossem. Ademais, ao abordar a lógica neoliberal, Eros Grau[ix] coloca que os gastos com segurança são os primeiros a serem sacrificados em prol da maximização de lucros, o que inerentemente significa um intencional incremento de riscos de grandes dimensões, bem como de consequências coletivas e metaindividuais lesivas visando apenas o aumento do ganho particular. Com isso em mente, parece ser latente a necessidade de se estudar e de se monitorar os Programas de Compliance e de Gestão de Riscos de potenciais grandes poluidores – como a Vale S.A. – questionando para quê e para quem eles servem e a favor do quê e de quem eles estão estruturados e operam.

[i]VALE. Gestão de Riscos. Disponível em: <http://www.vale.com/esg/pt/Paginas/GestaoRiscos.aspx>. Acesso em 15 mar 2022.

[ii]VALE. Relatório do Programa de Ética & Complicance 2021. p. 10. Disponível em: <http://www.vale.com/brasil/PT/aboutvale/news/Documents/2022/Relat%C3%B3rio_do_Programa_de_%C3%89tica_Compliance_2021.pdf>. Acesso em 15 mar 2022.

[iii]VALE. Ética, Compliance e Transparência Fiscal. Disponível em: <http://www.vale.com/esg/pt/Paginas/EticaETransparencia.aspx#:~:text=As%20investiga%C3%A7%C3%B5es%20do%20Canal%20de,a%20demiss%C3%A3o%20de%20181%20empregados.>. Acesso em 15 mar 2022.

[iv]VALE. Relatório do Programa de Ética & Complicance 2021. p. 11. Disponível em: <http://www.vale.com/brasil/PT/aboutvale/news/Documents/2022/Relat%C3%B3rio_do_Programa_de_%C3%89tica_Compliance_2021.pdf>. Acesso em 15 mar 2022.

[v]VALE. Controle e Gestão de Barragens. Disponível em: <http://www.vale.com/esg/pt/Paginas/ControleGestaoBarragens.aspx>. Acesso em 15 mar 2022.

[vi]BRASIL. Resolução nº 95, de 7 de fevereiro de 2022.

[vii]Agência Nacional de Mineração (ANM). III Relatório Anual de Segurança de Barragens de Mineração 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/anm/pt-br/assuntos/barragens/RelatrioAnual2021V31.pdf>. Acesso em 15 mar 2022.

[viii]SOUZA, Artur de Brito Gueiros. O informante no contexto dos sistemas de compliance. In: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Inovações da Lei n° 13.964 de 24 de dezembro de 2019: Coletânea de artigos. Coordenação e organização: Andréa Walmsley, Lígia Cireno, Márcia Noll Barbosa. v. 7. Brasília, DF: MPF, 2020, p, 33-34.

[ix]GRAU. Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 52.