EM FOCO

José Maria Panoeiro

Opinião de José Maria Panoeiro

Pesquisador do CPJM

junho, 2020.

O New York Times trouxe interessante reportagem sobre o furto do quadro “Spring Garden”, ocorrido na manhã do último dia 30 de março, no Museu Singer Laren, na Holanda, sob os auspiciosos comentários de Octave Durham, autor do furto de outros dois quadros de Van Gogh, em 2002, do Museu que leva o nome do pintor, em Amsterdã (https://www.nytimes.com/2020/05/27/arts/design/van-gogh-stolen.html). Enquanto permanece o mistério sobre o destino do quadro recentemente subtraído, os dois levados por Durham foram recuperados na cozinha da casa de Raffaele Imperiale, um dos integrantes mais expressivos da Camorra, a Máfia Napolitana.

Para além do inestimável valor cultural de determinadas obras de arte, signos de beleza e de determinado momento histórico, tais objetos circulam em mercados de leilões onde são arrematadas por impensáveis milhões de dólares como verdadeiros ícones de poder e prestígio. Conta o citado mercado, inclusive, com um site especializado em informações sobre leilões de obras de arte (artprice.com).

Contudo, o furto de uma obra de arte pode levar, paradoxalmente, a uma pergunta incômoda: quem se disporia a adquirir, por exemplo, um quadro como a “Mona Lisa”, a mais notável e conhecida obra de Leonardo Da Vinci, que está no Museu do Louvre desde 1797? É certo que La Gioconda esteve um período ausente do Louvre quando, em 1911, foi furtada por Vicenzo Peruggia, tendo sido localizada, dois anos depois, através da informação de um comerciante de antiguidades que levou a polícia de Florença à província de Como, no norte da Itália, onde Peruggia buscava algum comprador para a obra-prima de Da Vinci (https://www.dw.com/pt-br/1911-mona-lisa-era-roubada-do-louvre/a-613673).

Como bem observado por Durham, quem vier a furtar uma obra amplamente conhecida encontraria dificuldades em realizar o ilícito ganho econômico. No seu caso, diante da falta de interessados, restou vender os dois quadros de Van Gogh ao mafioso italiano. Questões como essas me faz refletir sobre um ponto importante do estudo da Economia e do Direito Econômico, mas que tem reflexos no Direito Penal Econômico –o valor das coisas.

Como se sabe, a humanidade vive sob a lei da escassez e, consequentemente, da constante organização das atividades de exploração de bens e serviços para responder ao citado dilema econômico. Diante de tal fato, há uma noção que é fundamental para a compreensão do que vem a ser “bem econômico”. Nele se reúnem duas características fundamentais, a utilidade e a escassez. Um bem é útil quando ele atende a uma determinada necessidade humana, o que não deixa de conter certo grau de subjetivismo, pois ser útil sob tal perspectiva significa tão somente que um determinado grupo de pessoas busca por tal bem no meio econômico, ainda que ele não atenda efetivamente à utilidade a priori vislumbrada. Dentro dessa perspectiva não se incluem discussões de ordem moral como as relacionadas ao uso de drogas, a prestação de serviços sexuais ou mesmo a aquisição de uma valiosa obra de arte furtada de um museu. Todos esses objetos apresentam alguma utilidade em termos mercadológicos. Por outro lado, a escassez deriva da condição de ser determinado bem útil ao ser humano, isto é, satisfazer a uma determinada necessidade, mas não existir em quantidade suficiente para o atendimento da demanda. É a utilidade que determina a escassez do bem, pois bens que não são úteis, não geram discussões em torno de sua escassez.

Não há dúvidas quanto à relevância do valor das coisas para o Direito Penal, porém, qual é o valor relevante? É o valor de uso, a utilidade da coisa para o sujeito? Ou seria o valor de troca, aquele correspondente à circulação patrimonial? A questão me fez recordar do “paradoxo da água e do diamante”, ventilado por Adam Smith (in A Riqueza das Nações: Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, 1776) para ilustrar a distinção entre valor de uso e valor de troca. Tal construção tem a marca da virada da Economia no Séc. XIX, quando ela passa a ser guiada mais pela matemática do que pela bússola moral dos filósofos. Dizia Smith que não há bem mais útil que a água, porém, ela pouco compra. Por outro lado, um diamante tem quase nenhum valor de uso, entretanto, em troca dele muitos bens podem ser adquiridos. Como destaca Peter Ubel (in A loucura do livre mercado: por que a natureza humana vai contra a economia: e por que isso importa, 2014), o jarro de água terá pouco valor de troca, a não ser que seu dono encontre um homem rico perdido – e sedento – no meio do deserto.

Parece a todo evidente que bens possuidores de valor de troca, independente de sua natureza ou dos aspectos morais em torno deles (uma obra de arte, um livro raro, pedras preciosas, ouro, joias, drogas, etc.) emprestam significado a uma série de tipos penais que vão desde os tradicionais delitos contra o patrimônio até as modernas incriminações do Direito Penal Econômico, como a lavagem de dinheiro em escala internacional. Aliás, quanto a esse último, é de recente memória o fato de que a Suíça devolveu à Justiça Federal brasileira 20 milhões de reais em diamantes e barras de ouro adquiridos com dinheiro de corrupção por determinado ex-governador de um Estado da Federação. Quanto mais aquecido um mercado, como o de obras de artes, mais ele se torna atrativo aos expedientes de ocultação e reciclagem de valores provenientes de subornos de empresas e empresários, de um lado, e políticos e governantes, do outro, pois possibilita operações cujos valores são regidos por um grau de subjetivismo que facilitaria a “limpeza” de proveitos escusos.

Porém, bens de valor incalculável, como a “Coleção da História da Companhia de Jesus”, que fora subtraída, em 2008, da nossa Biblioteca Nacional, ou um quadro de Van Gogh, pelo caráter único que possuem, limitam as possibilidades de circulação; seu valor é de tal modo singular que os coloca fora da bolsa de negociação ou, ao menos, lhes restringe o mercado a agentes que atuam na ilicitude, como nos casos comentados por Octave Durham, naquela reportagem do N. Y. Times.

Ao ser indagada se a arte é precificável, Mary-Kate O’Hare, consultora do Art Advisory & Finance do Citi Bank, respondeu que não. Isso porque, quando se vê um recorde de preço, como aconteceu com outro quadro de Leonardo da Vinci (“Salvatore Mundi”) que foi arrematado, em 2017, por US$ 450,3 milhões, coloca-se em causa a existência de limites de cotação para as grandes obras de arte (https://forbes.com.br/forbeslife/2018/12/especialista-explica-como-investir-em-obras-e-colecoes/).

Não obstante, o fato de um bem não ter liquidez de venda ou, ao revés, não possuir limite máximo de lance em leilão, não impede, em absoluto, que em torno dele se desenvolvam condutas como as de furto ou extorsão (p.ex., pedidos de “resgate” para a sua devolução), ou de branqueamento no mercado de negociações. Neste último caso, por intermédio de sucessivas etapas de mascaramento da origem espúria, é possível que uma empresa ou um fundo de investimento que negocie títulos relacionados com obras de arte, venha a se interessar e adquirir como ativo do seu patrimônio uma peça de origem duvidosa, o que pode render “dores de cabeça” com imputações de lavagem de dinheiro ou receptação dolosa ou culposa.

Considerando que o objetivo final de um programa de compliance é, justamente, o de evitar os riscos decorrentes de investigações ou acusações também de caráter penal, penso ser fundamental que o oficial ou o departamento de compliance das corporações adote e dissemine protocolos de cuidado para a aquisição de obras de arte. Dentre outros procedimentos de praxe, é de bom alvitre consultar especialistas, bem assim a unidade de obras de arte da Interpol (https://www.interpol.int/es/Delitos/Delitos-contra-el-patrimonio-cultural/Base-de-datos-sobre-obras-de-arte-robadas), além de outros sítios dedicados ao assunto, como a Art Loss Register (http://www.artloss.com/), antes de se decidir incursionar nesse lucrativo segmento econômico. Apesar de ser desejada por muitas pessoas físicas e jurídicas, uma obra prima de um renomado artista pode, muitas vezes, findar depreciada ou, talvez, pendurada em uma lojinha no Lago de Como ou em uma discreta cozinha napolitana.