EM FOCO

José Maria Panoeiro

Opinião de José Maria Panoeiro

Pesquisador do CPJM

agosto, 2020

Pensar o modo como uma sociedade reage a determinado comportamento que se desvia daqueles padrões mínimos de convivência diz muito com o estágio de evolução da própria sociedade. A existência do comportamento desviante, do qual o crime é apenas uma de suas formas, sugere inúmeras reflexões para a compreensão dos fenômenos e para a proposição de soluções sob diferentes perspectivas (práticas, políticas, morais, intelectuais, etc.). Não obstante, parece existir em toda a evolução daquilo que se denomina Teoria do Delito, a enciclopédia de conceitos jurídicos por meio dos quais se apreciará um fato com vistas a dizer da ocorrência de um delito, uma estreita conexão entre liberdade e responsabilidade, e, por via de consequência, entre crime e pena. Todo o desenvolvimento dos últimos cem anos da dogmática penal se moveu na direção da construção daquilo que se convencionou chamar de Teoria Democrática da Imputação Penal.[i]

A consolidação da democracia econômica[ii] nos países ocidentais correspondeu, por um lado, à consagração do sistema econômico de mercado, apesar de suas recorrentes crises, e, por outro, a uma defesa intransigente da democracia. Contudo, tal forma de organização social, embora não represente o primado da lex mercatoria, como parece fazer crer o discurso de entronização do mercado[iii], abriu espaço, desde a segunda metade do século XX, ao surgimento de um tipo específico de criminalidade que é consentânea à ideia de regulação econômica, a criminalidade econômica. Exprime-se deste modo a liberdade econômica como uma liberdade conformada dentro de determinadas balizas legais que atendem não apenas aos interesses no desenvolvimento da atividade lucrativa em si, mas, também, a outros relevantes valores do grupo social. A violação de tais regramentos abre espaço para, em determinados casos e conforme a decisão político criminal, o surgimento de crimes que se submetem à mesma disciplina de imputação penal democrática, mas não deixam de ser tão criminosos como quaisquer outros assim selecionados pelo legislador. Em outras palavras, crimes econômicos são tão (ou mais, pela lesividade potencial ou real) crimes do que furtos, apropriações indébitas, estelionatos, peculatos, apenas para ficar naqueles que não tem violência ou grave ameaça como seus móveis de atuação.

A crise financeira de 2008, como destaca a doutrina, com seus efeitos globais, foi fruto da ação especulativa levada a cabo por pessoas, e não uma disfuncionalidade de uma máquina que operava desprovida de qualquer vontade.[iv] Empresas são governadas por homens, que são empolgados por decisões racionais em prol do lucro, mas que, por vezes, fazem do cometimento de crimes uma conveniente opção diante da ausência de riscos ou de outros fatores de contenção como os modernos programas de compliance. Não fora a crise mencionada, inúmeras convenções internacionais sinalizam para a reprovabilidade de comportamentos como o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro, a criminalidade organizada e, com destaque, a corrupção. Não parece ser por outra razão que a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto nº 5.687, de 31 de Janeiro de 2006) destaca os riscos para a democracia, a justiça, a ética e a estabilidade das instituições, aponta para a afetação da economia e, ainda, destaca a correlação entre corrupção, criminalidade organizada e lavagem de dinheiro. A assunção de tal compromisso internacional pelo Brasil significa a manutenção de um regime de sanções que atente para a gravidade da corrupção.[v]

Diante de tal quadro o que eu indago é o seguinte: seria o Acordo de Não Persecução a resposta adequada para a macrocriminalidade econômica? Por exemplo, para combater a grande corrupção?

Como sabido, o binômio delito-pena está na base do Direito Penal. São conceitos antagônicos e interdependentes, pois não há delito sem pena e muito menos pena sem delito.[vi] Entretanto, a incapacidade de o Estado dar conta da multiplicidade de casos penais que se lhes apresentam vem promovendo  a busca por soluções alternativas, o que abriu as portas da consensualidade na definição da sanção penal, o que já estava sinalizado na Constituição de 1988 (art. 98). Esse novo quadro se materializou, nos anos noventa do século passado, por meio de figuras como o acordo civil com efeitos processuais penais, a transação penal e a suspensão condicional do processo (Lei n. 9.099/95) que indicavam uma nova abordagem para a persecução penal com franca mitigação da ideia de obrigatoriedade da ação penal pública. O critério escolhido pelo legislador para essa nova abordagem era o patamar de penas, um signo da gravidade abstrata de cada delito. A pena máxima de um ano, limitadora da competência dos juizados criminais, era o Norte para a incidência da transação penal e a mínima de igual patamar o critério de incidência para a suspensão condicional do processo.

A transação penal viabilizava, assim, a negociação de penas em hipóteses que, na forma da reforma penal de 1984 (Lei n. 7.209/84), eram destinadas, tratando-se de crimes dolosos, em sua quase totalidade à substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos (penas inferiores a um ano). Em 1998, buscando alternativas à pena privativa de liberdade, o legislador brasileiro promoveu uma nova reforma no Código Penal destinada permitir a substituição da pena privativa de liberdade em crimes dolosos não violentos, desde que a pena não ultrapassasse quatro anos (Lei n. 9.714/98).

Foi diante desse quadro jurídico e envolto, ainda, na radicalização do debate político e ideológico em que o país foi lançado desde 2015, que foi apresentado, em fevereiro de 2019, o chamado Pacote Anticrime (Projeto de Lei 882/2019). Um projeto destinado a promover uma série de alterações na legislação para a racionalização e modernização da legislação penal e processual penal. Não tardaram, porém, em surgir manchetes associando o projeto de lei a uma política criminal discriminatória.”[vii]

O projeto padecia de reflexões e, em alguns pontos, talvez não merecesse aprovação. Contudo, num país onde o custo do Judiciário se aproxima de uma dezena de bilhão de reais[viii], poderia ser uma solução inovadora a opção por acordos penais tal como adotado em outros países, como os Estados Unidos. A introdução do Acordo de Não Persecução tinha por escopo alcançar crimes cometidos sem violência ou grave ameaça e cuja pena máxima seria inferir a quatro anos. Em outras palavras, acabaria por alcançar boa parte dos casos nos quais haveria substituição de pena ao final do processo reduzindo custos para a Justiça e para o acusado.[ix]

E foi o que constou da exposição de motivos do projeto: “O art. 28-A. estende a possibilidade de acordo quando o acusado confessa o crime de pena máxima inferior a quatro anos, praticado sem violência ou grave ameaça. A tendência ao acordo, seja lá qual nome receba, é inevitável. O antigo sistema da obrigatoriedade da ação penal não corresponde aos anseios de um país com mais de 200 milhões de habitantes e complexos casos criminais. Desde 1995, a Lei nº 9.099 permite transação nos crimes de menor potencial ofensivo e suspensão do processo nos apenados com o mínimo de 1 ano de prisão. Na esfera ambiental, o Termo de Ajustamento de Conduta vige desde a Lei nº 7.347, de 1995. Os acordos entraram na pauta, inclusive, do poder público, que hoje pode submeter-se à mediação (Lei nº 13.140, de 2015). O acordo descongestiona os serviços judiciários, deixando ao Juízo tempo para os crimes mais graves. Porém, neste novo tipo de acordo que ora se propõe, as partes submetem-se a uma série de requisitos, citando-se como exemplo a proibição de ser concedida de quem já o tenha recebido nos últimos cinco anos. Por outro lado, pode o juiz recusar a proposta se considerar inadequadas ou insuficientes as condições celebradas. É dizer, a homologação judicial dá a necessária segurança à avença. (sem grifos no original)

Era, também, o que constava da mensagem de encaminhamento do texto proposto: “Art. 28-A. O Ministério Público ou o querelante poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, se não for hipótese de arquivamento e se o investigado tiver confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima não superior a quatro anos, mediante o cumprimento das seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:(…)

Como se constata, em lugar de se sujeitar a um processo criminal, com todos os ônus a ele inerentes, o autor dos crimes especificados poderia celebrar, desde logo, um ajuste com a acusação no sentido de resolver a lide penal. Contudo, se o agente optar por se sujeitar ao processo penal, bastaria recusar o acordo e se sujeitar aos riscos inerentes a qualquer processo.

Não obstante, as críticas lançadas e a associação imediata tanto à realidade penitenciária dos EUA e ao correlato instituto (plea bargain), acabaram por difundir a ideia de que se trataria de uma “confissão para condenar”[x], o que afrontaria, entre outros princípios, o privilégio de não autoincriminação. Alguns pareceres invocaram as diferenças marcantes entre o acordo proposto e a transação penal, em especial, o incremento de poder por parte do Ministério Público. Tal poder estaria manifestado na determinação do local da prestação de serviços ou na fixação de cláusulas sem previsão legal, na obtenção da confissão mesmo sem denúncia formal e, ainda, as consequências mais gravosas para o descumprimento do ajuste.

Contudo, o projeto aprovado pelo Congresso Nacional não foi aquele apresentado pelo então Ministro da Justiça, pois o destino do Projeto de Lei 882/2019 consta no site da Câmara dos Deputados e está disponível à consulta de qualquer cidadão: “Declarado prejudicado em face da aprovação em Plenário do Substitutivo ao Projeto de Lei 10.372, de 2018, adotado pelo Relator da Comissão Especial (Sessão Deliberativa Extraordinária de 04/12/2019 – 17h57 – 400ª Sessão).[xi]

Ao que parece, a apropriação do nome “Pacote Anticrime”, ao menos no que toca ao Acordo de Não Persecução pareceu indevida, pois aquilo que restou aprovado não apenas contrariou frontalmente não apenas a redação proposta, mas lhe feriu de morte o espírito. É de se notar que, tal como o faz a doutrina estrangeira, é possível debater a dificuldade de cumprir determinados starndards próprios do direito penal e processual penal quando se busca uma maior eficácia diante da grande criminalidade (narcotráfico, terrorismo, crime organizado, corrupção), o que pouco a pouco leva à aplicação de determinados institutos às condutas mais clássicas.[xii] É uma discussão retórica que, no meu entender, só seria com um profundo refinamento dogmático ou, o que parece mais efetivo e prático, com a edição de uma lei geral para a delinquência econômica ou um código penal econômico. Desta forma, ter-se-ia um ambiente jurídico onde os institutos elaborados para essa macrocriminalidade não poderiam, por força da vedação à analogia in malan partem, ser transpostos para a criminalidade clássica.

Ocorre que, o legislador brasileiro, ao fixar a pena mínima inferior a quatro anos para a incidência do Acordo de Não Persecução deturpou – no meu entender – o instituto, ao menos no que diz respeito à macrocriminalidade. É que estão alcançados, em tese, pelo instituto uma série de delitos relacionados à macrocriminalidade econômica – como a já citada grande corrupção, bem assim a lavagem de dinheiro, a organização criminosa, os crimes contra o sistema financeiro e o mercado de capitais, os crimes contra o consumidor, o abuso de poder econômico, entre outros.

Desse modo, eu pergunto: como se aplicará o confisco alargado, instrumento trazido pela Lei n. 13.964/2019 e previsto na Convenção supracitada, se ele depende de uma condenação e o acordo de não persecução inviabiliza o alcance de tal pronunciamento judicial? Complemento, ainda, com as seguintes indagações: o “Pacote Anticrime” aprovado é, de fato, um instrumento de enfrentamento da macrocriminalidade econômica? Será que, na verdade, ele não passa de um “presente natalino”, pela sugestiva data da promulgação da Lei n. 13.964/2019, 24 de dezembro de 2019?

A resposta para essas e outras perguntas, somente virá com o tempo. Contudo, sou de opinião que o novel instituto, ao final da tramitação legislativa, ficou deturpado da ideia original. E isso é extremamente preocupante no momento em que, no plano internacional, a macrocriminalidade alcança um patamar de reprovabilidade muito maior, diferenciado e mais severo, não sendo merecedora de um simples “acordo” para a resolução da lide penal.

[i] MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho Penal, parte general. 9.ed. Valencia: Tirant lo blanch, 2015, p. 222.
[ii] Sobre democracia econômica: MONCADA, Luis S. Cabral de. Direito Económico. 7.ed. Coimbra: Edições Almedina, 2018, p. 121.
[iii] RODRIGUES, Anabela Miranda. Direito Penal Económico: uma política criminal na era compliance. Coimbra: Edições Almedina, 2019, p. 16.
[iv] RODRIGUES, Anabela Miranda, op. cit., p. 19.
[v] Artigo 30: 1. Cada Estado Parte punirá a prática dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção com sanções que tenham em conta a gravidade desses delitos.
[vi] POLAINO NAVARRETE, Miguel. Lecciones de Derecho Penal, Parte General, Tomo II. Segunda edición. Madrid: Editorial tecnos, 2016, p. 17.
[vii]Por exemplo: “Por que o pacote anticrime de Moro só serve para atacar negros e pobres – Especialistas ouvidos pela Ponte analisaram 8 das principais propostas do texto e reprovaram 7; pacote é considerado ineficaz contra o crime e violento contra os direitos humanos.https://ponte.org/entenda-8-pontos-do-projeto-anticrime-do-ministro-sergio-moro/
[viii] Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03& anonymous=true&sheet=shResumoDespFT.
[ix] GIVATI, Yehonatan. The comparative law and economics of plea bargaining: Theory and evidence. Harvard Law School. John M. Olin Center for Law, Economics, and Business Fellows’ DiscussionPaper Series. Discussion paper nº 39. p. 1-26 Cambridge. 07/2011. Disponível em ≤http://www.law.harvard.edu/programs/olin_center/fellows_papers/pdf/Givati_39.pdf.≥ Acesso em: 30/07/2020.
[x] Neste sentido afirmou um dos entrevistados, Hugo Leonardo, vice-presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa): “Esse tipo de instituto no Estados Unidos é um problema, é um país que tem a população carcerária fora do padrão. Temos organizações dando conta de que há milhares de pessoas inocentes presas por conta desses acordos” Disponível em: ≤https://ponte.org/entenda-8-pontos-do-projeto-anticrime-do-ministro-sergio-moro/≥ Acesso em 27/07/2020.
[xi] Disponível em: ≤https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192353≥ Acesso em 27/07/2020.
[xii] CARRILLO DEL TESO, ANA E. Decomiso y recuperación de activos en el sistema penal español. Valencia: Tirant lo blanch, 2018, p. 309.