EM FOCO

Jorge Pontes

Opinião de Jorge Pontes.

Delegado da Polícia Federal e coautor do livro CRIME.GOV. 

outras entrevistas e opiniões

novembro, 2021.

No livro Crime.Gov – Quando Corrupção e Governo se Misturam, lançado em 2019 pela Editora Objetiva, eu e meu colega, o também delegado federal Marcio Anselmo, sugerimos (e buscamos conceituar) a existência de uma nova morfologia organizacional criminosa, uma plataforma – de viés estruturante – de fraudes e outros ilícitos, posicionada “hierarquicamente” acima do crime organizado tipo máfia. Essa modalidade delituosa seria promovida e protegida oficialmente, envolveria o alto poder político e financeiro (num consórcio entre o público e o privado) e teria suporte em setores dos três poderes da República.

Seria, desta feita, um crime de cima para baixo e de dentro para fora. O fenômeno ocorreria, com variações, nas outras duas esferas da administração pública, nos estados e municípios.

Pois bem, a obra foi vertida para o Inglês e estará sendo publicada pela editora britânica Bloomsbury, de Londres, com data marcada para lançamento mundial, na Europa, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá, Coreia, Japão, Austrália e Nova Zelândia, em 21 de abril de 2022, sob o título “Operation Car Wash – Brazil’s Institutionalized Crime, and The Inside Story of the Biggest Corruption Scandal in History”.

Em que pese o livro ser um recorte do que observamos até o ano de 2018, a versão em Inglês sairá com prefácio do Professor Robert Rotberg, conceituado especialista em medidas anticorrupção, da Harvard University’s John F Kennedy School of Government, no qual são devidamente mencionados e pontuados os últimos dois anos de retrocessos do enfrentamento à corrupção sistêmica no Brasil, operados tanto pelo governo Bolsonaro como por decisões do nosso Supremo Tribunal Federal.

A obra sairá em boa hora, pois o tema do combate à corrupção sistêmica merece ser retomado por nossa sociedade. Vivemos um momento complicado, que o Professor americano Edgardo Buscaglia, da Columbia Law School, de Nova York, chama de “contra-reformas mafiosas”, e a economista Maria Cristina Pinotti, coautora e organizadora da obra Corrupção: Operação Mãos Limpas e Lava Jato, refere-se como “refluxo”, popularmente conhecido como “abafa”, conforme as correntes que estudam a teoria da corrupção, como fenômeno político e das relações institucionais e humanas, em diversos países

Hoje, passados dois anos do lançamento da primeira edição do nosso livro, o fortalecimento e empoderamento do Centrão, o desmonte da Lava Jato e o aparelhamento de órgãos controladores e de setores do Judiciário, apontam para um objetivo final que seria a própria “legalização da corrupção”, a ser obtida com a desconstrução e enfraquecimento dos arcabouços legais e institucionais que deram suporte à obtenção de resultados no curso da Lava Jato, como colocou Maria Cristina Pinotti.

A propósito, a ocorrência de escândalos mundiais de corrupção em sequência estão provocando a produção de bons trabalhos analíticos sobre o tema. Merecem destaque, como exemplo, alguns títulos que chegaram recentemente às livrarias.

A jornalista Sarah Chayes, em seu recente trabalho On Corruption in America and What is at Stake, (Corrupção na América e o que está em jogo) lembra, sob o título “táticas e contra-golpes”, que grandes movimentos populares que conseguem derrubar governantes corruptos, cometem um grande e histórico equívoco, quando, logo em seguida às conquistas, dispersam, achando que sua missão estaria terminada em relação aos esquemas de corrupção. E prossegue: “as Hydras não morrem, e as redes das cleptocracias sempre lançam mão de táticas habilidosas para driblar o seus próprios destinos”.

Já obra Corruption Scandals and Their Global Impact, – Escândalos de Corrupção e seus Impactos Globais, uma compilação de textos atualíssimos publicada em 2019 pela Routledge Corruption and Anti-Corruption Studies, registra uma reflexão da professora americana Susan Rose-Ackerman que tem potencial de intrigar os eleitores brasileiros em especial: “…a democracia concede aos cidadãos o papel de determinar a escolha de seus próprios líderes políticos. Os escolhidos que se envolverem em corrupção podem igualmente ser retirados dos seus postos pelo voto dos seus eleitores. Mas a democracia não significaria necessariamente a cura para a corrupção. Inúmeros políticos que promovem campanhas com empoladas plataformas anti-corrupção, e com a costumeira retórica de que serão implacáveis com esses crimes, acabam envolvidos em escândalos. Aqueles que previamente bradaram os mais enérgicos discursos moralistas, acabam invariavelmente enredados pelas redes de corrupção que remanescem nas estruturas governamentais.

O flagelo que atinge nosso país é um fenômeno singular que realmente merece ser detidamente esquadrinhado pela academia, sob a ótica da criminologia.

Abaixo, uma síntese de nossas ideias que buscam identificar e definir esse “novo animal na floresta” das ciências criminais, o CRIME INSTITUCIONALIZADO.

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A PLATAFORMA CRIMINOSA OFICIAL DA CORRUPÇÃO SISTÊMICA – A DELINQUÊNCIA INSTITUCIONALIZADA

O crime institucionalizado é um sistema de fraudes abençoado pelo poder central do país e sustentado por uma rede de apoio que percorre os Três Poderes do Estado. Se investigações policiais e decisões judiciais popularizaram o jargão Orcrim, agora seria necessário fazer a distinção entre ele e o Incrim (o crime institucionalizado).

Ao contrário da organização criminosa “convencional”, o crime institucionalizado não está atrelado a atividades escancaradamente ilegais, como o tráfico de drogas, de armas, a prostituição, o tráfico de pessoas ou o jogo ilegal. Esse tipo de crime está entranhado, na verdade, na plataforma oficial: nas três esferas (no caso brasileiro, a partir do Executivo federal), no estamento público, nos ministérios e nas secretarias da República, nas atividades legislativas e normativas, nas empresas públicas, nas estatais, na política partidária e nas regras eleitorais para prospectar e desviar recursos do erário.

O faturamento desse crime provém dos contratos de serviços e obras, das concorrências públicas, dos aluguéis de prédios para órgãos estatais, dos repasses para programas de governo, inclusive para ongs. É uma atividade infinitamente mais lucrativa e segura do que qualquer negócio ilegal convencional.

Enquanto o crime organizado “tradicional” viceja graças à letargia e à omissão dos homens públicos, o crime instituciona- lizado é fruto de uma ação estruturada e articulada por grupos que comandam determinado setor, companhia estatal ou unidade pública.

Comandar de forma criminosa um setor governamental, uma grande e lucrativa estatal ou uma empresa pública de porte, porém, ainda não produziria, por si só, a diferenciação entre a Incrim, como a entendemos, e a Orcrim. Basta lembrar a frase do então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, do PP de Pernambuco, ao insistir com a então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, em colocar um afilhado na diretoria de exploração e produção da Petrobras: “O que o presidente [Lula] me ofereceu foi aquela diretoria que fura poço e acha petróleo. É essa que eu quero”.

O fenômeno que estamos caracterizando conta necessariamente com braços nos Três Poderes da República e se consagra quando sua interferência atua em favor do sistema criminoso, seja legislando em prol dos esquemas (no caso do Poder Legislativo), seja julgando de forma benevolente (no caso do Poder Judiciário) os envolvidos que são pegos pela polícia e pelo Ministério Público.

Poderíamos tentar definir a delinquência institucionalizada como os crimes cometidos por um grupo em posição central e privilegiada dentro do poder público e dos establishments estatal e empresarial. Esses crimes lançam mão, de forma estruturante, dos arcabouços governamentais e da oficialidade sobre a qual detêm comando, implicando a capacidade de influência sobre mais de um dos Três Poderes da República. Enquanto o crime organizado, por mais sofisticado e poderoso que seja, é sempre levado a cabo nas sombras, na marginalidade, o crime institucionalizado, por outro lado, é estabelecido no núcleo do poder, nas estruturas oficiais dos governos, e protagonizado por quem detém autoridade formal.

Se as atividades principais de uma Orcrim são irrefutavelmente ilegais, o crime institucionalizado, por sua vez, desvirtua e corrompe práticas ordinárias da sociedade e dos governos — desde a contratação de uma empreiteira para construir uma ponte até uma refinaria, ou ainda negócios permanentemente renováveis, como a limpeza urbana, por exemplo.

Na investigação dos delitos comuns, costumamos aplicar uma máxima consagrada em romances policiais: “cherchez la femme” [procure a mulher], uma expressão francesa que aponta razões passionais para os assassinatos dos livros de suspense. Nos inquéritos sobre a delinquência organizada convencional, temos o costume de adaptar a frase para “cherchez l’argent” [procure o dinheiro], ou, numa expressão similar, “follow the money”. No caso do crime institucionalizado, teríamos de colocar em prática, além dos dois primeiros, um novo conceito, o de “cherchez le stylo” [procure a caneta].

Quando estamos lidando com esse tipo de prática, além de “cherchez l’argent”, precisamos rastrear, conhecer e responsabilizar as autoridades políticas que assinaram a nomeação do gestor encarregado de fraudar e desviar os recursos públicos.

O poder de nomear autoridades é um bom exemplo da diferença de alcance desses dois tipos de crime. Enquanto o organizado coopta ou, quando muito, infiltra um agente numa unidade policial, num posto de fiscalização na fronteira ou num aeroporto, o institucionalizado indica e nomeia, com a devida publicação em diários oficiais, dezenas de autoridades que servem aos seus propósitos tanto na empreitada criminosa em si como na tomada de medidas que garantem a impunidade desses grupos, nos Três Poderes da República.

O Diário Oficial e a caneta do alto escalão do governo formam a mais instrumental de todas as suas armas. É o poder de nomear tanto um ministro que vai pilotar um grande esquema fraudulento num ministério como o de exonerar um diretor-geral da PF que não se mostra “sensível e colaborativo” aos projetos governamen- tais. O “dono da caneta” nomeia ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) e dos tribunais superiores. É com ela que o Poder Executivo opera a influência em outros poderes, indicando, em última instância, até mesmo os responsáveis por julgá-lo.

Outro ponto importante dessa questão é que o crime institucionalizado, com seus exércitos de nomeados em cargos e fun- ções estratégicas, tem o poder de elaborar e promulgar normas administrativas, e até leis, que facilitem sua própria consecução. Enquanto organizações criminosas convencionais se servem de ameaças e violência explícita contra os adversários, o crime institucionalizado promove vinganças legislativas contra aqueles que se põem em seu caminho. Elas se consumam com a elaboração de projetos de lei que buscam inibir ou dificultar o trabalho dos investigadores. Projetos que ampliam e agravam o espectro do crime de abuso de autoridade ou que obrigam os investigadores a avisar com três dias úteis de antecedência a realização das di- ligências policiais, limitando ainda as investigações ao prazo de 24 meses, ou tentativas de proibir acordos de delação premiada se o colaborador estiver preso são exemplos do poder e domínio desse tipo de crime. Nenhum deles, felizmente, foi aprovado.

Com a Lava Jato, parte da elite política brasileira, sentindo-se ameaçada pelo cerco da Justiça, colocou em andamento esses projetos de lei na tentativa de intimidar promotores, juízes e policiais federais. Em nenhum momento o Parlamento brasileiro engajou-se em iniciativas para fortalecer a investigação criminal ou as autoridades de law enforcement, e sim o contrário.

Além disso, as vendetas administrativas, ainda mais comuns do que as legislativas, promovem a transferência ou remoção de investigadores, a troca de chefias e os cortes ou contingenciamentos nos orçamentos das agências encarregadas da persecução penal.

A título de exemplo, temos um caso recente de extinção de uma delegacia estadual que investigava crimes de corrupção após investigações alcançarem autoridades públicas, na contramão da história e dos anseios da população de redução da corrupção.

A territorialidade das condutas criminosas é ainda outra diferença entre esses dois modelos organizacionais. O crime organi- zado mapeia os quadrantes das cidades, demarcando regiões e esquinas, delimitando suas áreas de ação; o crime institucionalizado, por outro lado, demarca cargos, estatais, ministérios e secretarias de obras, assim como megaeventos esportivos internacionais.

É difícil assinalar um momento de gênese, da implementação, no Estado brasileiro, dessa institucionalização do crime; o período em que a histórica deterioração da administração pública pela corrupção evoluiu para esse estágio no país. É de entendimento comum que a dilapidação do erário no Brasil é endêmica e pode ter suas raízes também nos costumes, na cultura nacional. A noção de que a coisa pública, em vez de ser “de todos”, é “de ninguém” traz implícita a lógica de que é menos grave se apropriar dela. A corrupção é aceita como o business as usual nas relações empresariais com o setor público.

Em paralelo a essa cultura de complacência com a corrupção, há décadas temos também a prática de um modelo de financiamento eleitoral que propicia que governos e parlamentares já iniciem seus mandatos comprometidos com os financiadores de suas campanhas. Os mais expressivos partidos políticos brasileiros, assim como os seus quadros mais populares, vêm sendo historicamente eleitos e financiados por grandes empresas.

Ministérios, secretarias, empresas estatais e sua infinidade de cargos se tornam objeto de um loteamento que obedece aos acordos traçados na corrida eleitoral precedente. E a máquina de desvios entra em ação para favorecer os mesmos grupos em- presariais financiadores, que ajudarão em campanhas futuras, mantendo assim um círculo vicioso.

São esquemas sem distinção ideológica, já que operam em governos de direita e de esquerda. Os partidos políticos funcio- nam, assim, como quadrilhas ou bandos, como demonstram as descobertas de operações como a Lava Jato e anteriores, e como confirmam as condenações da Justiça.

Do modo como fora realizada até hoje a atividade política se tornou o esteio do crime institucionalizado, pois é ela que oferece as portas de entrada e a tomada de poder de seus membros e operadores.

A possibilidade de arrecadar fundos por intermédio de fraudes passa a predominar sobre a filosofia e o ideário partidário. Um loteamento que reproduz, guardadas as proporções, as famílias mafiosas, ao repartirem os bairros de uma grande cidade, fortalecendo o grupo criminoso como um todo.

Por oportuno, impende ser esclarecido que a corrupção ocorre globalmente em diversos países – de forma semelhante nos seus mecanismos e jogos – mas com raízes e impactadas por causas diferentes, que variam de acordo com as idiossincrasias e as fragilidades históricas de cada nação. Logo, os remédios e abordagens para o seu enfrentamento não serão os mesmos e deverão considerar distinções.

De volta à nossa realidade, percebemos, no modelo brasileiro, uma incrível capacidade de metamorfose das estruturas comprometidas que fornecem apoios à corrupção sistêmica, ocorrendo igualmente uma espécie de rodízio dos atores chaves das fraudes (espécie de  “chassis”), que dão a sustentação aos esquemas e promovem a defesa das oligarquias que os operam.

Também alertamos que essas oligarquias são fortemente associadas a alguns segmentos empresariais – o lado privado do balcão das fraudes em contratos públicos. A Lava Jato comprovou isso com o envolvimento em peso das grandes empreiteiras nas fraudes bilionárias que foram tramadas com a Petrobras.

E, por último, já mencionamos que há igualmente alguns setores – que chamamos de superestruturas – que, não estando no centro da perpetração dos esquemas ilegais, vivem e se locupletam de suas polpudas beiradas. São atores mais periféricos que apoiam e/ou protegem os esquemas em troca de “quinhões” e de “momentos positivos” no grande tabuleiro do capitalismo de compadrio, que se forma a partir dessa institucionalização da delinquência política.

Tais grupos fornecem um apoio valoroso ao establishment político que conduz o crime institucionalizado. Podem ser classes inteiras, setores de carreiras públicas, segmentos de tribunais superiores, organizações, sindicatos e extratos profissionais, inclusive privados. Podem ser também nichos empresariais. Essas superestruturas variam, conforme o momento e o nível de resistência moral de seus líderes, representantes ou simples integrantes.

Ao observarmos o presidente Bolsonaro – eleito na esteira das repercussões positivas da Operação Lava Jato – se alinhar de forma ferrenha ao grupo político conhecido como Centrão, que já esteve no epicentro de inúmeros escândalos de corrupção, e declarar que há no Supremo Tribunal Federal, hoje em dia, 10% de si, referindo-se a um determinado Ministro, não temos dúvidas acerca do enorme poder de metamorfose da criminalidade institucionalizada.

Por derradeiro, importa aqui deixar claro que esses esquemas não têm convicções definidas e não podem ser identificados exclusivamente com determinado campo ideológico, seja de esquerda ou de direita.