EM FOCO

José Maria Panoeiro

Opinião de José Maria Panoeiro.

Pesquisador do CPJM.

outras entrevistas e opiniões

outubro, 2021.

No passado, o Ministério Público (MP) integrou a estrutura de outros Poderes. Contudo, a partir da Constituição da República de 1988 (CRFB/88), ficou assente sua nova, edificada sob o pilar da independência frente às demais instituições. Nesse passo, com o objetivo, dentre outros, de um eficaz enfrentamento da corrupção e da defesa dos interesses da Sociedade, a Constituição Cidadã distanciou a atuação ministerial da arena política, conferindo autonomia e imparcialidade na sua atuação.

A Constituição de 1988 converteu o Parquet em guardião da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (Art. 127, CRFB), consagrando, aos seus integrantes, a independência funcional (Art. 127, § 1º, CRFB). O membro do Ministério Público tem suas manifestações condicionadas pela Lei e por sua própria consciência. Não se deve, entretanto, confundir tal prerrogativa com o agir ao alvedrio da ordem jurídica e da realidade social. A liberdade de formação de convicção ocorre dentro da Constituição e das Leis, de sorte que não cabe aos integrantes da Instituição –salvo casos extremos de teratologia – se afastar dos legítimos preceitos normativos.

Para evitar o contágio do exercício funcional das paixões políticas, entendeu o Constituinte por distanciar o MP da atividade parlamentar. É dizer, a posição ou simpatia ideológica de um Procurador ou Promotor não deve contaminar sua atuação funcional, cuja bússola aponta sempre para a ordem jurídica vigente. Esse distanciamento não exclui a possibilidade da indicação do Chefe da Instituição pelo Presidente da República, submetida, sua aprovação, ao Senado Federal. A interferência, entretanto, esgota-se no ato de designação, pois, na atuação finalística – isto é, naquilo que são as funções ministeriais –, o chefe institucional, tal como ocorre com qualquer outro membro, também goza da mencionada independência funcional. E, não satisfeito com tal estruturação, quis a Constituição deixar claro que as funções ministeriais só podem ser exercidas por integrantes da carreira (Art. 129, § 2º, CRFB) cujo ingresso se dá por concurso público (Art. 129, §3º, CRFB).

Há no regime do Ministério Público, com alguns ajustes em razão da natureza da função, uma simetria evidente com as funções da magistratura, não sendo outro o motivo pelo qual, em certos países, ambas as funções se inserem na mesma carreira. Ao Juiz é dado a autonomia para prolatar pronunciamentos judiciais, que só são passíveis de revisão por meio de outros pronunciamentos judiciais; ao membro do MP, há a independência funcional para exercer as funções que lhe cabem. Quando um Procurador da República ou Promotor de Justiça, dentro da divisão de trabalho interna, delibera por oferecer denúncia contra alguém pela prática de um delito, está a exercer em plenitude sua independência. Há controle sobre tal ato? Sim, por meio do pronunciamento judicial que admite a acusação, ou seja, que recebe a denúncia. Quando, ao revés, no âmbito da mesma liberdade, ele entende pelo arquivamento de determinada investigação, tal pronunciamento será submetido ao Poder Judiciário, que exercerá um controle anômalo, ou à instância revisional do próprio MP. Caso o Juiz divirja do pronunciamento ministerial, não lhe cabe substituir o órgão de acusação, mas remeter à revisão da esfera superior do próprio órgão. E tudo isso porque apenas um dos integrantes do MP pode lançar o pronunciamento definitivo sobre a matéria que é da sua atribuição. O exemplo descrito, embora restrito à temática criminal, pode ser transposto para todas as matérias de atribuição da instituição, tais como as questões de improbidade administrativa, celebração de acordo de colaboração premiada, dentre outras.

Diante desse enquadramento constitucional, causa enorme preocupação o Substitutivo à Proposta de Emenda Constitucional N. 05/2021 (PEC-5). Isso porque se incursiona em caminho equivocado, embora parta da louvável premissa, já desenvolvida acima, do condicionamento da atuação do membro do MP à ordem jurídica. No entanto, o parecer que fundamenta a PEC argumenta que o princípio democrático e o ideal republicano legitimariam uma posição em prol do aumento da participação do Poder Legislativo no Ministério Público, por intermédio do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Dito de outra forma, almeja-se um controle político da Instituição.

Convém ressaltar que os membros do Ministério Público são servidores públicos por vocação. Eles já estão sujeitos a inúmeras vedações. A implementação de um controle externo fortemente politizado, com poderes – inclusive – de desconstituir “atos administrativos” realizados pelos membros do MP, poderá redundar em consequências sociais gravosas. A fórmula, contida na PEC-5, de que tal intervenção se daria somente em casos que constituíssem “violações do dever funcional” se apresenta por demais lacônica. Na verdade, sob o rótulo “violação funcional” caberiam inúmeras hipóteses… A rigor, todos os atos praticados pelos membros do Ministério Público não deixam de ser “atos administrativos”, posto que, por exclusão, não são “atos jurisdicionais”. Dessa feita, tudo estaria sujeito ao escrutínio do CNMP e, no limite, do próprio Parlamento.

Poderia um oferecimento de denúncia ou o ajuizamento de uma ação de improbidade administrativa ser revisto – e desconstituído – pelo órgão de controle externo (CNMP) a pretexto de uma suposta violação do dever funcional pelo membro do MP? Esse tipo de revisão não transcenderia aquilo para o qual o CNMP foi concebido? Isso não se constituiria, concretamente, em uma indevida ingerência na atividade-fim de Promotores e Procuradores da República? Afinal de contas, essa proposta de emenda constitucional não comprometeria a supracitada independência funcional?

Infelizmente, pela leitura da PEC-5, a resposta para todas essas perguntas parece ser positiva.

Releva salientar que, como todo e qualquer ocupante de função pública, o membro do Ministério Público já está sujeito a controle. Todavia, em relação à sua atuação funcional – é dizer, quanto a seus pronunciamentos finalísticos –, a responsabilidade administrativa, e mesmo a criminal, só deve ocorrer em casos de erro grosseiro, má-fé ou atuação temerária. E assim já decidiu o próprio Supremo Tribunal Federal.[1] Destarte, salvo melhor juízo, a PEC-5, ao menos como proposta, não se torna instrumento de aperfeiçoamento da Instituição. Pelo que se vê, ela parece conduzir o Ministério Público para uma politização que fora rechaçada pelo Constituinte Originário. O papel – muitas vezes incômodo –, desempenhado pelos Promotores e Procuradores da República, em relação àqueles que transgridam a ordem jurídica, deve estar sujeito a controle, não político, mas por parte do Poder Judiciário, onde tem lugar tanto as suas postulações, como também os questionamentos sobre sua atuação resolutiva extrajudicial.

Há outros aspectos merecedores de veementes críticas na PEC-5 – como, por exemplo, a ausência de simetria entre a proposta de reconfiguração do CNMP, olvidando-se de igual providência para com Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão com o qual ele guarda estreita simetria. Contudo, em razão das limitações de espaço desse texto, gostaria de chamar a atenção de todos para os perigos que a PEC-5 representa, não somente para a independência funcional do MP, mas, sobretudo, para a ordem constitucional brasileira.

[1] STF: HC 74318 / ES, Rel. Min. Francisco Rezek, Segunda Turma, DJ 20-06-1997.