EM FOCO

Luciana Sperb Duarte Vassalli

Opinião de Luciana Sperb Duarte Vassalli

Procuradora da República e Mestranda em Diritto Penale dell’Impresa na Università Cattollica del Sacro Cuore, em Milão

junho, 2020

Um dos mais graves problemas com que se defronta o Direito Penal Econômico atualmente é o da responsabilização por crimes praticados em organizações complexas. Se a empresa desenvolve um papel essencial na economia global, e sua atividade é não só permitida, mas encorajada, é também verdade que tal atividade comporta graves riscos de ofensa a bens jurídicos plúrimos e difusos, que devem ser mantidos, em chave de prevenção, em níveis aceitáveis. Em outra ponta, é certo que os cânones de Direito Penal, criados para a responsabilização individual, e notadamente por condutas de complexidade causal média-baixa, não são suficientes à solução dos problemas prementes de nosso tempo, em que o processo decisório-causal, no ambiente interno das empresas, é complexo tanto no plano horizontal como no vertical.

Para além dos esquemas de responsabilização penal individual clássicos, o Direito italiano vem respondendo a tais exigências com duas estratégias, complementares uma à outra. A primeira é a responsabilização penal segundo o esquema do crime comissivo por omissão, pelo não impedimento do delito, doloso ou culposo, praticado por outros membros da empresa, no exercício da atividade econômica. Para tanto, o legislador multiplica as posições de garantia[1] (cuja predisposição, de maneira precisa e determinada, constitui um dos deveres organizativos da empresa, como adverte A. GARGANI[2]) e, forte nos artigos 40, comma 2, e 110 do Código Penal italiano, que tratam respectivamente do crime comissivo por omissão e do concurso de agentes, a jurisprudência reconhece a responsabilização do garantidor até mesmo em casos de crimes patrimoniais comuns praticados a dano de terceiros,[3] o que dá uma idéia da profundidade com que são compreendidos os deveres de vigilância e controle a cargo dos membros de entes complexos.[4]

A segunda estratégia é a responsabilização da pessoa jurídica, decorrente de crimes praticados por seus membros, em um modelo penetrante que implica até a responsabilidade pelo inadimplemento culposo de deveres de prevenção e controle. A rigorosa responsabilidade penal do garantidor pelo não impedimento de crimes dolosos praticados por outros membros da empresa, se é largamente estendida, como anotado, tanto com respeito aos garantes, quanto aos delitos, por outro lado é condicionada à escrupulosa comprovação do dolo do concorrente, conferindo equilíbrio ao sistema.

Nesse campo, foi notável a evolução da jurisprudência italiana.

O concurso omissivo em crimes dolosos não prescinde do congruente dolo do concorrente, e, à míngua de indícios de que este tenha aderido ao plano criminoso com dolo direto, a imputação da responsabilidade ao garante frequentemente assenta-se no dolo eventual. Por muito tempo, na Itália, considerou-se que esse elemento subjetivo estivesse demonstrado pela presença de sinais (red flags), ainda que não tão evidentes, de que um crime estivesse sendo cometido na empresa, e admitia-se que, pela posição que ocupava na organização, o garantidor tivesse a consciência da infração (a famosa fórmula “non poteva non sapere”), e sua omissão em ativar os poderes impeditivos a seu dispor demonstrasse adesão volitiva ao delito. Em suma, assentava-se a responsabilização penal em uma série de presunções.[5]

Esse estado de coisas descurava os princípios constitucionais da responsabilização penal por fato próprio e da culpabilidade, e a jurisprudência finalmente passou a exigir o acertamento do dolo-representação mediante a demonstração da presença de sinais de alarme perspícuos e peculiares, de certo grau de anormalidade especialmente para o administrador não executivo – , e que remetam imediatamente ao evento ilícito.[6] Nessa toada, jurisprudência e doutrina italiana, majoritariamente, recusam a responsabilização do garantidor por aplicação da teoria da cegueira deliberada.[7]

Da mesma forma, a partir da pronúncia das Seções Unidas da Corte di Cassazione na paradigmática Sentença ThyssenKrupp[8], o acertamento do dolo-vontade tornou-se imperativo. Com essa decisão, a Corte declarou que o dolo eventual é um estado psicológico real, pareado àquele do dolo direto, e que deve ser acertado no processo para além de qualquer dúvida razoável. Evidenciou o conceito da Primeira Fórmula de Frank, segundo o qual “assumir o risco de produzir o resultado” significa persistir mesmo na certeza da superveniência do evento lesivo. E, em rol não exaustivo, indicou elementos em torno dos quais deve gravitar o acertamento do elemento subjetivo em hipóteses tais: a distância entre a conduta concretamente adotada e a conduta devida; a personalidade e a experiência pregressa do agente; a duração temporal e a repetição da ação; o comportamento sucessivo ao fato; a compatibilidade entre o fim da conduta  e as consequências colaterais do resultado lesivo; a probabilidade de verificação do evento; as consequências negativas do crime para o agente; o contexto lícito ou ilícito em que se desenvolveu a ação.

Ao lado desse modelo incisivo de responsabilização penal individual por omissão do garante, o sistema italiano conta com a responsabilização administrativa à pessoa jurídica pelos crimes que seus membros venham a praticar  no exercício da atividade econômica, fundamentada na culpa de organização. Essa responsabilização é cumulativa com a responsabilização penal individual, e foi introduzida pelo Decreto Legislativo n. 231, de 08 de junho de 2001.

O Sistema 231 assenta-se na governança corporativa e aposta na adoção, pelas empresas, de um programa capaz de minimizar o chamado rischio reato.[9] A implementação e efetiva atuação do modelo preventivo, à luz das best practices, é causa de exoneração da responsabilidade à pessoa jurídica. Desse modo, pode-se entrever no próprio ente uma peculiar posição de garantia. Nas palavras de A. GARGANI, “uma meta-posição, funcionalmente superior à soma das posições de garantia a cargo dos membros da organização” [10] , e que se traduz no dever de prevenção mediante a predisposição procedimental idônea à vigilância e controle dos perigos inerentes à atividade econômica.

O D.L. 231/2001 alude a responsabilidade “administrativa” do ente, porém prevê sanções bastante graves, entre pecuniárias, interditivas, confisco e publicação da sentença (art. 9), e predispõe à defesa as garantias próprias do direito penal e processual penal. São sujeitos à responsabilidade os entes dotados ou não de personalidade jurídica. [11] Excluem-se do Sistema 231 o Estado, os entes públicos territoriais, outros entes públicos não econômicos e entes que desenvolvem função constitucional. De acordo com o Decreto Legislativo, o ente deve adotar e atuar um modelo organizativo capaz de prever, adequadamente à sua dimensão, tipo de atividade e natureza, dispositivos aptos ao desenvolvimento da atividade de maneira conforme à lei e com aptidão para  descobrir e eliminar tempestivamente situações de risco. O dever de vigiar o funcionamento e a observância desses protocolos deve ser confiado a um organismo dotado de poderes autônomos de iniciativa e controle dentro da empresa, denominado Organismo de Vigilância. Ademais, prescreve o D.L. 231/2001 “a verificação periódica e eventual modificação quando descobertas significativas violações de suas prescrições ou sempre que houver modificações na organização ou na atividade desenvolvida”, bem como “um sistema disciplinar idôneo a sancionar o desrespeito às medidas” adotadas pelo modelo de gestão e organização do risco.

Pune-se o ente pelos crimes-pressupostos [12] cometidos em seu interesse ou a sua vantagem, praticados por pessoas com função de representação ou que exerçam gestão e controle de fato, ou seja, aqueles que ocupam o vértice da empresa; ou por pessoas submetidas à direção ou vigilância dos primeiros, se a prática criminosa tiver sido possibilitada pela inobservância, mesmo culposa, de tais deveres de vigilância.

Na hipótese de infrações-pressupostas praticadas pelos dirigentes, além do ônus de demonstrar a predisposição e atuação eficaz do modelo preventivo, cabe ao ente que pretender afastar a responsabilização provar que o autor iludiu fraudulentamente os protocolos de gestão do risco. O efeito da exoneração não alcança o confisco do eventual proveito que a prática criminosa tenha trazido ao ente, inclusive pelo equivalente (art. 6, comma 5, do D.L. 231/2001).

A responsabilidade do ente subsiste mesmo quando o autor do crime não tiver sido identificado ou não seja imputável, e ainda que a punibilidade do fato tenha sido extinta por uma causa diversa da anistia (princípio da autonomia da responsabilidade da pessoa jurídica, plasmado no art. 8 do D.L. 231/2001).

Ao lado de tudo isso, o Sistema 231 incentiva condutas reparatórias por parte da empresa, com respeito aos danos experimentados pela vítima e à sanatória das falhas que permitiram o cometimento do crime, acenando, a determinadas condições, com a redução da sanção pecuniária e a eliminação de sanções interditivas.

Em conclusão, a atuação desses dois mecanismos do sistema italiano, apenas rapidamente delineados, à parte as muitas críticas que lhes podem ser feitas – e que não cabem neste espaço –, parece indicar um caminho interessante para a responsabilidade por crimes praticados na atividade empresarial.

[1] CENTOZE alude à “explosão de controles” e à “sociedade de controles”: F. CENTONZE, Il problema della responsabilità penale degli organi di controllo per omesso impedimento degli illeciti societari (una lettura critica della recente giurisprudenza), in Rivista delle società, 2012, 2-3, p. 317 ss.
[2] A. GARGANI, Posizioni di garanzia nelle organizzazioni complesse: problemi e prospettive. In Riv. trim. dir. pen. ec., 2017, 3/4, p. 508 ss.
[3] Confira-se a condenação de membros do Collegio Sindacale, um órgão de controle da gestão societária (art. 2403 do Código Civil italiano), por concurso omissivo em crimes continuados de estelionato praticados pelos gestores, por não haverem impedido a negociação de valores mobiliários baseados em prospectos informativos falsos:  Cass. fevereiro 1991, in Cass. Pen., 1991, pp. 1849 ss.
[4] São frequentes as imputações a membros do Conselho de Administração, não executivos, e a membros do Collegio Sindacale, por atos de malversação de bens societários que causaram a falência, praticados pelos gestores: cf., exemplificativamente, CC 14045/2016, 21702/2016 e 44107/2018.
[5] Sentenças do Caso Banco Ambrosiano: Cass. 22 abril 1998, in Guida al diritto, 1998, n. 33, pp. 91 e ss. Confiram-se, também, C. PEDRAZZI, Tramonto del dolo?, in Riv. Ir. Dir. Proc. Pen., 2000, p. 1265 ss.; M. ROMANO, Dolo eventuale e Corte di cassazione a sezioni unite: per una rivisitazione della c.d. accettazione del rischio, in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 2015, 2, p. 559 ss.; C. E. PALIERO, La colpa di organizzazione tra responsabilità collettiva e responsabilità individuale, in Riv. trim. dir. pen. ec., 2018, 1/2, p. 175 ss.; D. PULITANÒ, Personalità della responsabilità: problemi e prospettive, in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 2012, 4, p. 1231 ss.
[6] A decisão paradigmática foi aquela exarada pela Corte di Cassazione no Caso Bipop-Carire: sentença n. 41136, saudada pela doutrina como “o renascimento do dolo”.
[7] Além dos trabalhos já citados, cf. M. CAPUTO, La mossa dello struzzo: i segnali di allarme tra willful blindness e dolo come volontà, in Giurisprudenza italiana, 2016, 10, p. 2250 ss.  
[8] Sentença n. 38343, de 24 de abril de 2014. Cf., ainda, L. EUSEBI, Formula di Frank e dolo eventuale in Cass. S.U., 24 aprile 2014 (Thyssenkrupp), in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 2015, 2, p. 623 ss.
[9] Sobre a potencialidade criminógena de estruturas organizadas para a atividade econômica, cf. G. FORTI, Il crimine dei colletti bianchi come dislocazione dei confini normativi. “Doppio standard” e “doppio vincolo” nella decisione di delinquere o di blow the whistle, in A. ALESSANDRI (a cura di), Impresa e giustizia penale: tra passato e futuro, Giuffrè, 2009, pp. 173-226; G. FORTI, Spunti per un’analisi criminologica della materia penale economica, in R. BORSARI (a cura di), Itinerari di diritto penale dell’economia, Padova University Press, Padova, 2018
[10]  A. GARGANI, Posizioni di garanzia nelle organizzazioni complesse: problemi e prospettive. In Riv. trim. dir. pen. ec., 2017, 3/4, p. 508 ss.
[11] Citando decisão da Corte di Cassazione, D. PULITANÒ refere a exclusão das empresas individuais da responsabilidade administrativa ex D.L. 213/2001: In Diritto Penale, 8. Ed., G. Giappicchelli Editore, p. 569.
[12] Os crimes capazes de deflagrar a responsabilização da pessoa jurídica encontram-se listados na Seção III do D.L. 231/2001.