EM FOCO

Luís Consentino

Opinião de Luís Consentino

Pesquisador do CPJM

setembro, 2020.

Não é novidade que nas últimas décadas o desenvolvimento das telecomunicações e dos meios de transporte, aliadas com soluções no campo da informática, encurtaram distâncias e aproximaram pessoas de modo nunca antes visto no planeta. A isto chamou-se de globalização. O crime, como atividade humana, não ficou alheio a esta realidade, em especial o crime econômico.

A diluição das fronteiras nacionais em nome da rápida circulação de capitais e de mercadorias é uma marca do nosso tempo. Dentro desse contexto, não é difícil perceber que também as atividades criminosas que envolvem transferência de capitais e de mercadorias para além das fronteiras nacionais foram sobremaneira facilitadas. Assim, pode-se dizer que alguns delitos típicos do direito penal econômico, tais como a lavagem de dinheiro, a corrupção internacional, o contrabando e o descaminho de mercadorias, mormente quando praticados por organizações criminosas bem articuladas, foram, de fato, incrementados.

Atentos a esta realidade, os Estados nacionais preocuparam-se em formular estratégias e políticas comuns, com o fim de conter o avanço da criminalidade organizada no cenário internacional, seja no âmbito da ONU, como são exemplos as Convenções de Viena de 1988 (contra o tráfico de drogas ilícitas), a de Palermo de 2000 (contra o crime organizado transnacional) e a de Mérida de 2003 (contra a corrupção), ou seja no âmbito regional, como na União Europeia e no Mercosul.

Nessa linha, partindo das convenções internacionais, é perceptível o esforço dos Estados em implementar uma legislação mais harmoniosa quando da tipificação de alguns delitos, descrevendo-os de modo semelhante, com o fim de tornar mais compreensível e célere a cooperação internacional em matéria penal, como a extradição, a transferência de processo e outros.

Na seara da investigação não é diferente. Em delitos complexos e com características transnacionais, como a lavagem de dinheiro, observa-se uma crescente utilização de modernas técnicas de investigação e de obtenção de prova para além das fronteiras nacionais, com aumento do intercâmbio jurídico-cultural entre as autoridades encarregadas da persecução penal, com sói ser a Polícia e o Ministério Público.

Dentro desse contexto, é de se louvar a promulgação, em 10 de agosto do corrente, pelo Decreto nº 10.452/2020, do Acordo de San Juan, firmado em 2010 no âmbito do Mercosul, que estabelece o acordo quadro de cooperação entre os Estados partes do Mercosul e Estados associados (Bolívia e Equador), prevendo a criação de equipes conjuntas de investigação (ECIs).

Antes, o tema das “joint investigation teams” tinha sido tratado apenas de modo pontual pelo legislador brasileiro, no art. 5º, III, da Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016, que “dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas”. Na União Europeia, o tema foi objeto de alguns dispositivos do Tratado de Amsterdam e da EU Convention on Mutual Assistance.

As equipes conjuntas de investigação são um instrumento de cooperação jurídica internacional em matéria penal, na qual dois ou mais Estados se unem, por tempo determinado, para investigar fatos específicos, através da conjugação de esforços de suas agências de investigação.

A possibilidade da criação das chamadas Equipes Conjuntas de Investigação (ECI) no âmbito do Mercosul é alvissareira e responde uma demanda de legalidade e segurança jurídica indispensáveis para a correta coleta de provas. A investigação de crimes complexos, envolvendo organização criminosa transnacional, é tormentosa e exige enorme dedicação e conhecimento de diversos ordenamentos jurídicos, razão pela qual o advento das ECIs viabilizam que a investigação entre dois ou mais países possa ocorrer de maneira mais fluída, com maior interação e fluxo facilitado entre as autoridades.

Nessa linha, ressalte-se que o Acordo de San Juan (Decreto nº 10.452/2020) estabelece, por seu art. 5º, que, para a criação das ECIs, a autoridade competente do Estado requerente solicitará para a sua Autoridade Central, que analisará se a solicitação reúne as condições estabelecidas no presente Acordo e, nesse caso, encaminhará o pedido à Autoridade Central do Estado Requerido. De outro vértice, a Autoridade Central da Parte Requerida, mediante prévio controle das condições do presente Acordo encaminhará, em seu caso, o pedido a sua autoridade competente a fim de que esta se pronuncie sobre a criação de uma ECI, conforme sua legislação interna.

Aqui, sou da opinião que o controle exercido pelas Autoridades Centrais no que toca à instalação das ECIs deve ser, em regra, de caráter formal, ou seja, de atendimento das condições previstas no tratado, sem adentrar na conveniência e oportunidade das investigações em si, uma vez que a análise deste mérito compete às agências de investigação (Polícia Federal e Ministério Público Federal). Contudo, tendo em vista que nas relações internacionais não há anjos, ao contrário, há disputas geopolíticas e comerciais de grande monta, penso ser de bom alvitre que a Autoridade Central resguarde para si um mínimo poder de veto para, em casos excepcionais e justificados, evitar a prática do “lawfare” (uso estratégico de instrumentos jurídicos para fins políticos) contra o interesse nacional (art. 21, I e III, da Constituição Federal de 1988).

Por sua vez, o art. 11 do Acordo de San Juan, reza que “a prova e a informação obtidas em virtude da atuação da ECI somente poderão ser utilizadas nas investigações que motivaram sua criação, salvo acordo em contrário das autoridades competentes”. Neste ponto, entendo que nada impede que o instrumento de cooperação técnica que constituiu a ECI seja aditado para acrescentar fatos novos, abarcando objetivos que não originariamente previstos, desde que de comum acordo com a contraparte estrangeira e sem descurar da higidez da cadeia de custódia da prova.

Deste modo, é certo que as equipes conjuntas de investigação representam mais uma estratégia da comunidade internacional no combate aos crimes complexos com alcance transnacional, tais como a lavagem de dinheiro, a corrupção internacional, o contrabando, dentre outros. O Brasil, com o protagonismo do Ministério Público Federal, apesar de possuir ECIs com a Argentina, o Paraguai e a Itália, conta agora, a partir da promulgação do Acordo de San Juan, com um arcabouço legislativo mais robusto, ao menos dentro dos limites do Mercosul.

Assim, penso que o aprimoramento deste instrumento levará a obtenção de provas de modo mais rápido e seguro, levando em conta as peculiaridades dos ordenamentos jurídicos locais. Sou da opinião que é fundamental incentivar a utilização das ECIs na persecução e no enfrentamento ao crime organizado transnacional, haja vista que o instituto revela potencialidade para alcançar a máxima eficiência investigativa sem, contudo, olvidar da segurança jurídica e do respeito aos direitos e garantias fundamentais dos investigados.