EM FOCO

Maria Helena C. N. de Paula

Opinião de Maria Helena C. N. de Paula

Procuradora Regional da República e Mestranda em Direito pela FGV

agosto, 2020

No último dia 06 de agosto, em cerimônia presidida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) foi formalizado o Termo de Cooperação Técnica entre o Tribunal de Contas da União (TCU), a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Controladoria-Geral da União (CGU). O objetivo foi regulamentar os acordos de leniência e, supostamente, conferir-lhes maior previsibilidade e segurança. Chamou a atenção, contudo, a ausência de adesão do Ministério Público Federal (MPF) aos termos do referido acordo. Qual o perigo disso?

O tema da corrupção há muito tempo está na pauta do dia. O Brasil é signatário de Convenções e Acordos Internacionais que o comprometem com a adoção de medidas mais eficientes e eficazes no combate e punição de infrações decorrentes de atos de corrupção. Foram outorgadas competências específicas a diversos órgãos e instituições destinadas à sua investigação, persecução e sancionamento.

Desde a Constituição Federal de 1988 fortaleceu-se e ampliou-se a atuação de vários órgãos. O Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública tornou-se o principal ator na defesa dos direitos e garantias individuais. O TCU passou a atuar de maneira mais ampla e genérica na fiscalização operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta tendo em conta não só o critério da legalidade, mas também da legitimidade e economicidade dos atos de seus agentes. A CGU passou a ter a missão de elevar a credibilidade do Estado, por meio da participação social, do controle interno governamental e do combate à corrupção em defesa da sociedade.[1]

Some-se a esse esforço, diversas reformas legislativas que permitiram a importação para o contexto brasileiro de instrumentos como os acordos de colaboração premiada e os acordos de leniência. A adoção dos referidos acordos se deu em um contexto em que os órgãos de controle, por meio de seus instrumentos de repressão convencionais, não foram capazes de avançar nas investigações. Como técnica especial de investigação, o acordo de leniência visa permitir que o Estado se valha da colaboração ativa, livre e voluntária de infrator, que, antes de deflagrada uma investigação ou no curso dela, traga relevantes e inéditas informações sobre práticas delitivas, sua autoria e materialidade, além da indicação de meios probatórios. De outro, um meio de defesa, uma estratégia à disposição do eventual infrator na avaliação das probabilidades relacionadas à sua efetiva punição ou às possibilidades concretas de esquivar-se dela.[2]

O incremento no uso de tais acordos, especialmente os pactos de leniência firmados com empresas, desencadeou diversas questões. Muitas delas decorrentes da possibilidade de uma mesma conduta submeter-se a mais de uma esfera de responsabilização. Embora assegurada a independência entre as instâncias, em muitas situações condutas relacionadas a atos de corrupção na esfera administrativa encontram tipificação também na esfera penal. Isso sem falar nas infrações previstas na Lei de Improbidade Administrativa.

Atualmente estão previstos três modelos de leniência no ordenamento nacional: na Lei de Defesa da Concorrência, na Lei Anticorrupção e na Lei do processo sancionador na esfera de atuação do Banco Central e da CVM. Enquanto no primeiro o acordo gera efeitos na órbita penal, podendo resultar, inclusive, na extinção da punibilidade, nos demais as normatizações apenas resguardam a atuação de outros órgãos em suas respectivas atribuições.

A existência de múltiplas instituições com competências em relação às condutas envolvidas nos pactos, acarreta uma série de questões. O Termo de Cooperação Técnica, mencionado no início desse texto, ressalta ser necessário que os diversos atores públicos ajam de forma coordenada e em estrita observância às suas atribuições e competências legalmente estabelecidas. Sem isso, compromete-se a segurança jurídica, geram-se conflitos interinstitucionais, sobreposição de atuações, insuficiência ou vácuos na atuação estatal, impunidade e desproporcionalidade na punição das pessoas físicas ou jurídicas. Some-se a essas, o risco de acirramento da competição por protagonismo entre as instituições que lidam com os acordos.

É certo que ao longo dos últimos anos já foram implementados esforços visando contornar essas disfuncionalidades. Muitos acordos de leniência já foram celebrados conjuntamente pelo MPF, CGU e AGU ou, ainda, de modo espelhado, em momento próximo e segundo os mesmos critérios. Isso aumenta o grau de atratividade dos acordos, que está diretamente relacionado à sua amplitude e segurança. A leniência deve ser atrativa para a empresa que traz informações à administração em troca da obtenção de benefícios. Mas, para que isso ocorra é necessário que o acordo possa produzir reflexos em outras esferas de responsabilização.

Na busca pela harmonização, buscou-se, por outro lado, intensificar o diálogo, sempre pautado na boa-fé e vontade das instituições e seu comprometimento com o interesse público. Nesse sentido, no campo interno foram implementadas medidas voltadas ao estabelecimento de diretrizes, parâmetros e rotinas procedimentais a serem observadas com relação aos pactos de leniência. No campo externo, foram firmados memorandos conjuntos e termos de cooperação técnica voltados à consolidação de experiências e célere troca de informações e expertise.

 Daí porque, agora, em momento agudo, no qual, busca-se enfraquecer e amesquinhar a atuação dos órgãos envolvidos no combate à corrupção, o Termo de Cooperação Técnica com a participação dos diversos órgãos envolvidos deveria ser notícia a ser comemorada. Seria uma oportunidade única para que se pudesse, tal como mencionado nas suas justificativas, conferir-lhe maior segurança e atratividade. Uma pena que isso não tenha ocorrido. E por um simples motivo: embora tenha constado do referido Termo a participação do MPF, este não aderiu às disposições ali contidas.

E não poderia ser diferente. O Ministério Público Federal, como instituição autônoma e independente e titular exclusivo da ação penal pública deveria ser o protagonista nesses acordos. Seu alijamento das discussões e negociações gera instabilidade para aqueles que pretendem se valer dos benefícios inerentes à leniência. Isso porque ainda que participem e formalizem o acordo todas as demais instituições, poderá o MPF adotar as demais medidas, tanto de cunho penal, como na área da improbidade. Isso, por óbvio, não afasta os problemas decorrentes da atuação de múltiplas instituições já acima mencionados.

Por outro lado, ao prever que incumbirá à CGU, uma vez constatada a participação de pessoas físicas, acionar o MPF e a Polícia Federal para eventual atuação penal, e a AGU e o MPF para atuação em matéria de improbidade, o Termo de Cooperação Técnica subverte a ordem constitucional. O MPF é órgão autônomo e não se submete ao Poder Executivo, como estabelece o Termo. Ademais, a reparação do dano e a eventual repatriação de valores são efeitos secundários da leniência que, precipuamente, é um instrumento de alavancagem das investigações.

Ademais, o Termo de Cooperação, na forma que se apresenta, ainda oferece um risco adicional. Normalmente os atos de corrupção envolvem agentes públicos. Ao conferir protagonismo à CGU o Termo, de um lado, acaba por limitar a atuação dos demais órgãos de controle, transformando-a não só em uma espécie de “super agência”, como afastando-a de sua própria conformação e estrutura constitucionalmente previstas. De outro, a concentração de poderes em um único órgão aumenta o risco de sua captura. A existência de autoridades dispersas e a ausência de coordenação são fatores que, em tese, diminuem a possibilidade de cooptação, na medida que exigem a atuação e eventual interferência dos interessados em diferentes frentes. O investimento em maior coordenação em situações em que o risco de captura ou arbitragem são maiores; embora não possa preveni-los, pode ajudar a controlá-los, tornando mais difícil para os órgãos agir unilateralmente sem consequências.

Como visto, da forma proposta, concentrou-se poderes em um órgão de Governo que tem por missão detectar a atuação de agentes corruptos e ímprobos. Tal fato, por si só, aumenta o risco de que a CGU sofra pressões e influências políticas no momento da elaboração dos acordos com as empresas que buscam a leniência, afastando-se dos objetivos almejados.

Por todas essas razões penso que se desperdiçou uma ótima oportunidade para contornar alguns dos problemas inerentes aos acordos de leniência. Como se sabe, eventuais alterações legislativas são custosas e demoradas. Para que possam conduzir aos objetivos desejados pela Sociedade no combate à corrução, devem se submeter a um amplo debate, que longe de restrito aos órgãos aqui mencionados, necessita envolver todos os Poderes e representantes da sociedade civil e do empresariado. No momento atual, e diante dos projetos em discussão no Legislativo, isso pode acarretar problemas ainda maiores e significar um verdadeiro retrocesso jurídico. Por isso espera-se que referido Termo de Cooperação Técnica possa ser aprimorado e modificado de maneira que possa alcançar os propósitos nele declarados.

É velho o ditado popular que afirma que “pau que nasce torto morre torto”. Vamos torcer para que um bom carpinteiro dê um jeito nisso!

[1]      Disponível em https://www.gov.br/cgu/pt-br/acesso-a-informacao/institucional.
[2]      MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. 5a Câmara de Coordenação e Revisão. Estudo Técnico no 01/2017. Disponível em :http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/publicacoes/estudo-tecnico/doc/Estudo%20Tecnico%2001-2017.pdf.