EM FOCO

Rodrigo Amaral

Opinião de Rodrigo Amaral

Mestre em Direito Penal pela UERJ e advogado associado da Fernando Fernandes Advogados

maio, 2020

Tive a oportunidade de realizar minha pesquisa de mestrado, sob a orientação dos Profs. Drs. Artur Gueiros e Luís Greco, sobre o que significa o princípio da confiança no direito penal. Cheguei à conclusão que o princípio da confiança funciona como uma autorização para agir pressupondo que os demais atuarão conforme o dever, salvo se existirem elementos concretos que indiquem o contrário.

Nos casos em que há divisão de trabalho, pode haver, de forma superficial, uma bipartição de constelações de casos: situações onde há uma relação vertical de trabalho e onde há uma relação horizontal. Em uma relação horizontal de trabalho, prima facie não há um dever de ingerência de um agente sobre o outro, de modo que um não pode responder a título de omissão imprópria pela simples não intervenção sobre o comportamento equivocado do outro. O problema, todavia, fica mais complexo nos casos em que há uma relação vertical de trabalho, na medida em que há uma relação de subordinação onde o ascendente não pode se eximir completamente de supervisionar o inferior hierárquico. O contrário violaria o princípio segundo o qual deve-se exigir mais de quem tem mais poder, corolário do princípio da isonomia (art. 5º, caput, CRFB/88).

Todavia, é da própria ratio da divisão de tarefas liberar alguns personagens de determinadas atribuições, de modo a viabilizar a própria atividade da empresa. Nesse sentido, aquele que delega não se exime completamente de todas as atribuições relacionadas ao objeto da delegação, mas tem o seu dever convertido em algo diverso. Entretanto, isso não significa uma obrigação de controle total sobre o inferior hierárquico, mas somente de uma obrigação de realizar determinados atos de natureza preventiva. Aqui, o princípio da confiança terá um papel importante para determinar se alguém poderá responder por omissão por não ter agido para impedir um erro de terceiro que resulte em um fato penalmente relevante.

Neste pequeno ensaio, não há espaço para uma longa exposição dos diferentes deveres que alguém pode ter em relação a outro personagem numa estrutura hierárquica. O que importa, aqui, é ter em mente que o dever de garantidor não é constitutivo do princípio da confiança ou vice-versa, na medida em que este último será relevante para aferir o desvalor jurídico-penal da ação ou omissão de um comportamento humano, o que não se confunde com o dever de garantidor. Em outras palavras, o mero não poder confiar no outro não é razão para gerar um dever de garantidor que não existia antes.

O que ocorre é que se um superior hierárquico não realiza o seu dever de prevenção em relação ao comportamento do inferior, o princípio da confiança simplesmente não cumpre nenhum papel. Por exemplo, um médico-cirurgião não pode, numa operação, deixar o médico residente ao seu bel prazer, sem nenhuma supervisão. Aqui, se o jovem residente provoca algum resultado penalmente relevante, o médico-cirurgião não poderia invocar o princípio da confiança para eximir-se da responsabilidade penal. Intitulei essa situação como uma não diminuição juridicamente desaprovada independente de um risco, que é justamente a situação onde poder ou não confiar não responderá o problema da imputação.

Por outro lado, se o superior hierárquico realiza o seu dever preventivo e mesmo assim o inferior incorre em um resultado penalmente relevante, o princípio da confiança será fundamental para determinar se aquele responderá penalmente a título omissivo. Se não havia nenhum elemento que indicasse que o superior não poderia confiar na conduta correta do inferior, o princípio da confiança deverá ser o fundamento para a não responsabilização penal do superior. Caso contrário, o superior será imputável (a depender dos demais elementos da estrutura do delito) penalmente pelo resultado a título omissivo.

Esse pequeno escrito tem o condão, portanto, de chamar atenção para o fato de que a imputação de um superior hierárquico não pode ocorrer de maneira automática, meramente por ele deter uma posição de poder. Cabe ao magistrado verificar os elementos da imputação, com o fim último de verificar se o réu se comportou ou não de forma errada e vedada pelo tipo penal apontado pela acusação.