EM FOCO

Rodrigo Villar

Opinião de Rodrigo Villar

Pesquisador do CPJM.

outras entrevistas e opiniões

janeiro, 2021.

O Plenário do Senado aprovou, no final do ano passado, o Projeto de Lei (PL) nº 4.253/2020, após um longo processo leglistativo de proposições semelhantes, ora pontuais, ora mais abrangentes, contidas em outros PL’s. O texto final seguiu para sanção do Presidente da República, estabelecendo novas normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais de todos os entes da federação, além de alterar as Leis 8.987/1995, e 11.079/2004, bem como o Código de Processo Civil e o próprio Código Penal.

Com efeito, o aprovado PL nº 4.253/2020 propõe derrogar os arts. 89 a 108 da Lei das Licitações (Lei n. 8.666/1993), na data de sua publicação, bem como revogar os demais dispositivos da Lei das Licitações, a Lei do Pregão (Lei n. 10.520/2002) e os arts. 1º a 47, do Regime Diferenciado de Contratações (Lei 12.462/11), após decorridos dois anos de sua publicação oficial. Demais disso, diversas normas que regulamentam as referidas leis serão também revogadas tacitamente após o decurso do período de vacatio legis. Portanto, após a sanção expressa ou tática do Presidente, a lei será promulgada, quando terá vigência, mas vigor, com força ab-rogatória, postergado por dois anos, de modo que, nesse ponto, permanecerá a Lei n. 8.666/1993 regendo o processo de licitação até que seja ultimada toda essa complexa alteração no nosso ordenamento jurídico.

Há muitas mudanças no horizonte, como as procedimentais, referentes à inserção da etapa de julgamento como prévia a de habilitação; as alterações das modalidades, com inserção do diálogo competitivo e menção expressa ao pregão, sem mais fazer referência ao valor da contratação; as novas hipóteses e valores de dispensa e de inexigibilidade de licitação, além de outras cuja a análise extrapolaria os objetivos desse trabalho.

Dessa feita, gostaria de destacar que, na fase interna da licitação, passará a ser obrigatório que o edital preveja a implantação de programa de compliance ou de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento (art. 25, § 4º). Em sentido semelhante, determina o art. 59, inc. IV, do mesmo documento, que o desenvolvimento pelo licitante de um programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle, será critério de desempate a ser observado entre duas ou mais propostas.

Como se pode observar, o novo marco legal do processo administrativo de licitação trouxe uma relevante novidade que não existia expressamente na legislação pretérita, em virtude da cultura de integridade atualmente vigente no mundo dos negócios. Essa aliança entre os agentes do capitalismo e os agentes de Estado já estava sendo verificada no ordenamento pátrio, a exemplo de setores altamente regulados, como o Sistema Financeiro Nacional, que estabeleceu, por meio da Resolução n. 2.554 do Banco Central do Brasil (BACEN) de 1998, a necessidade de implantação e implementação de controles internos, em observância ao primados do Acordo de Basiléia firmado em 1988 para fixar maior controle sobre o sistema financeiro. Mais tarde, um grande estímulo às políticas de compliance foi conferido pela Lei Anticorrupção do (art. 7 º, § 1º, da Lei n. 12.846/2013).

Considero oportuno ressaltar que essa nova realidade de instituição de procedimentos de controles internos assume tamanho relevo que passou a orientar a Política Criminal da generalidade dos países, a partir de aportes iniciados nos Estados Unidos. No Brasil, por exemplo, com as modificações promovidas pela Lei n. 12.683, de julho de 2012, a Lei de “Lavagem de Capitais” (Lei n. 9.613/1998) passou a prever que setores obrigados deverão instituir “políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações”, em materialização as diretivas de conformidade. Segue-se, assim, a esteira evolutiva do surgimento e desenvolvimento do compliance e do seu respectivo instrumento de concreção, com propensões de auto e hetero controle e de vigilância, como resposta aos escândalos corporativos ocorridos nos últimos tempos.

Sobre o tema, convém sublinhar que a inovação, prestes a ser aprovada, espelha o disposto no art. 9º, § 1º, da Lei n. 13303/2016, que trata da gestão da integridade nas empresas estatais, incentivando a criação de código de conduta e integridade para assegurar, principalmente, a higidez corporativa, as práticas de disclosure sobre gerenciamento de riscos e a prestação de contas (accountability). O novel quadro normativo torna, ainda, factível o processo de due diligence para orientar o processo licitatório, permitindo a coleta de informações sobre o participante e os possíveis riscos associados as suas operações econômicas, de sorte a identificar, prevenir ou mitigar possíveis efeitos adversos capazes de comprometer o interesse público.

Sob tais cercanias, assegura-se os desideratos e o próprio objeto do processo licitatório, conferindo transparência e segurança ao ambiente público e econômico, além, ainda, de fortalecer a governança corporativa (corporate governance) perante os parceiros participantes ou contratantes. Tudo isso passará a ser realidade a partir da exigência de programa de compliance capaz de dar concretude aos compromissos internos e objetivos das empresas, sem olvidar a necessária confiança que deve ser fornecida ao mercado, à própria sociedade, aos parceiros contratantes e às partes interessadas (stakeholders).

A importância da temática sedimenta a própria criação do Portal Nacional de Contratações Públicas (art. 174 do projeto da nova Lei das Licitações), que irá permitir o controle exercido pelos entes públicos e também pela própria sociedade, inclusive viabilizando o acesso às informações referentes à execução do contrato. Isso vai possibilitar a comunicação entre a população e representantes da Administração e do contratado designados para prestar as informações e esclarecimentos pertinentes. De efeito, o princípio da transparência, catalogado no art. 5º do referido PL, densifica-se para estabelecer formas plurais de prestação de contas transcendentes às esferas dos evolvidos no processo licitatório.

Em que pesem os seus méritos, deve-se sobressaltar que há pontos que poderiam ser aprimorados no Projeto de Lei nº 4.253/2020, a partir dos enfoques propositivos de compliance e da própria dinâmica econômica determinada pelo mercado. Explica-se.

No cenário atual de conformidade global e transfronteiriça (cross-border compliance), que há muito despertou para o combate às fraudes, à corrupção, à lavagem de dinheiro e à evasão fiscal, inclusive com a formatação de arranjos globais que se dedicam a tais desideratos, em especial no ambiente de promoção do compliance público, a nova Lei falhou ao não exigir a apresentação prévia de programa de integridade para a contratação com o parceiro público. Como visto acima, o compliance será exigido do licitante vencedor somente no prazo de seis meses após a celebração do contrato. Isso deixa um flanco aberto a diversos riscos – financeiros, operacionais, de imagem etc. –, o que é algo intolerável, principalmente para a probidade e a moralidade administrativa, representando, ainda, uma possível fragilização da própria gestão da coisa pública.

Como se sabe, o compliance é um instrumento imprescindível para proteger bens jurídicos e evitar ou mitigar os riscos econômicos, com parametrizações internas e de direitos flexíveis ou guidelines impositivos para setores regulados e para a coisa pública (aspecto preventivo do compliance), além de funcionar como mecanismo para detectar, apurar e sancionar irregularidades e ilícitos, subsidiando a decisão sobre contratações e operações financeiras com terceiro (aspecto repressivo).

Sob essa ótica, a idoneidade e a capacidade operacional-financeira do parceiro contratante são padrões de integridade societária que devem ser exigidos pela Administração previamente ao processo licitatório, principalmente, para intensificar elementos dissuasivos de subornos e de outras formas de corrupção nos setores público e privado.

Penso que a empresa deixou de ser um mero ator econômico baseado na lógica racional de custos/benefícios, para se tornar uma pessoa jurídico-econômica pautada pelo regime de direitos/deveres de integridade. Doravante, constitui-se como verdadeiro cidadão fiel ao Direito artífice no processo de evitação de comportamentos desvirtuados, inclusive daqueles que atentam contra os interesses da sociedade.

No mesmo norte, o compliance público representa a instituição de deveres e de mecanismos para combate aos ilícitos no setor público e promoção da integridade no âmbito de órgãos, instituições e empresas estatais, cooperando no combate às formas plurais de comportamentos desviados, sobremaneira corrupção e fraudes, a fim de conferir feições adequadas ao funcionamento da economia e à gestão da Administração pública.

Repita-se: a novel legislação representa, sim, um avanço ao exigir a implementação do programa de integridade, o que evidencia novos instrumentos para a consecução do processo licitatória e em defesa do patrimônio público. Incrementa-se, desta feita, o eixo central axiológico de promoção à moralidade e à legalidade para consecução de objetivos da República catalogados no art. 3º, da CRFB, que integram o sistema anticorrupção composto por diversas leis que concebem um tratamento específico para condutas que envolvam agentes públicos e/ou patrimônio ou interesse público.

Todavia, devo registrar que dispensar o pleno funcionamento do programa de integridade antes da contratação com a Administração é um ponto que merece ser revisitado, em função do possível comprometimento do próprio processo administrativo de contratação, tornando-o inexequível e desvirtuando os fins da própria licitação, que é a escolha da melhor proposta, é dizer, a mais vantajosa para o poder público. Isso somente será, de fato, verificado a partir do monitoramento e gerenciamento prévio dos riscos inerentes à decisão de contratação com parceiros, sob pena de comprometer a própria integridade pública.

É certo que muitas empresas e empresários adotarão a cautela da implementação de um programa de integridade em momento antecedente à sua participação no processo licitatório. No entanto, como a exigibilidade legal da sua institucionalização somente se dará no semestre subsequente à celebração do contrato com o ente público, há uma clara fragilização das estratégias que norteiam a chamada “era compliance”, deixando um flanco aberto a uma série de riscos e, naturalmente, à eventuais questionamentos na esfera judicial.