
A extradição de delinquentes econômicos – Too big to be extradited?
Por Artur Gueiros, Coordenador Acadêmico do CPJM.
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04/12/2020.
Como se sabe, o objetivo principal dos programas de compliance é gerir os riscos da atividade empresarial, prevenindo ou minimizando ilícitos corporativos. Contudo, esse efeito preventivo nem sempre se atinge, ocorrendo, assim, situações de lesões ou, ao menos, acusações de perpetração de crimes por parte de empresas ou seus dirigentes.
Em paralelo a esse fenômeno, uma questão que se coloca é a extrema facilidade de tráfego de pessoas que singulariza a “aldeia global” em que hoje vivemos. A despeito de, circunstancialmente, estarmos enfrentando restrições de locomoção por causa da pandemia do coronavírus humano, é certo que nem isso impede que detentores de elevado status econômico possam cruzar as fronteiras entre países – por via terrestre, aérea ou marítima –, esquivando-se, eventualmente, de prestar contas perante a lei ou a justiça de um determinado local, em virtude de ilícitos que o compliance não conseguiu evitar.
Nesse contexto, descortina-se a questão da extradição de criminosos econômicos. O que eles teriam de diferente dos demais criminosos? Será que características criminológicas do white-collar criminal – tais como a crença na impunidade e um trato leniente por parte de autoridades, imprensa e opinião pública – também se projetariam na esfera transnacional? Afinal de contas, existiria o too big to extradited?
Sem pretensão de esgotar a temática da colaboração penal extradicional – que, demais a mais ocupou boa parte das minhas pesquisas e produções científicas, antes e depois do meu doutoramento – o que se constata é que há pouca bibliografia sobre extradição de criminosos econômicos.[1] E isso contrasta com a realidade empírica de casos rumorosos, de argumentos mais ou menos similares dos prófugos de colarinho branco e do repertório jurisprudencial de análise de pedidos de extradição por crimes financeiros, tributários, ambientais, espionagem industrial, falências fraudulentas, assim por diante.
A respeito de casos polêmicos envolvendo crimes econômicos, pode-se mencionar:
- a extradição do banqueiro Salvatore Cacciola (https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/cacciola-passou-sete-anos-foragido-na-italia-apesar-dos-pedidos-de-extradicao-11519923) (https://oglobo.globo.com/economia/principe-de-monaco-aprova-extradicao-de-salvatore-cacciola-3610487)
- a extradição do banqueiro Henrique Pizzolato (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/10/1688942-extradicao-de-pizzolato-pode-acontecer-a-partir-do-dia-7.shtml);
- o pedido de extradição do político Paulo Maluf (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2014/04/19/interna_politica,423826/estados-unidos-mantem-pedido-de-prisao-do-deputado-paulo-maluf.shtml);
- o pedido de extradição do empresário Carlos Ghosn (https://internationalextradition.org/?p=776);
- o pedido de extradição da empresária Meng Wanzhou (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/09/28/executiva-da-huawei-acusa-eua-de-enganar-canada-em-caso-de-extradicao.htm); e
- o pedido de extradição do empresário Arthur Soares (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/10/25/interna-brasil,800978/empresario-rei-arthur-foragido-da-lava-jato-e-preso-em-miami.shtml).
O principal argumento apresentado por esses e outros acusados ou condenados por crimes econômicos é o de que extradição seria motivada por “perseguições políticas” ou por “disputas concorrenciais”. Haveria, assim, intrínseco aos pedidos de entrega extradicional, a existência de supostas “retaliações” do Estado Requerente, em razão da mudança de grupos políticos detentores do poder. Extrinsecamente, há o argumento de que o processo originário que motivou – ou que ainda motiva – o pedido de entrega estaria eivado de violação aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, além de outros supostos vícios persecutórios.
Especificamente envolvendo prófugos brasileiros, àqueles se somam argumentos acerca das péssimas condições das nossas prisões, que não estariam “aparelhadas” para receber criminosos do colarinho branco. Ademais, tem surgido, nos últimos anos, argumentos de (oportuna) aquisição da nacionalidade do país de refúgio, considerando as características do Brasil ter sido um país de imigrantes, não sendo difícil encontrar, por exemplo, ascendentes que vieram de Portugal, Espanha ou Itália.
Com relação a bibliografia dessa temática, cite-se os trabalhos de Christophe Samper, José Luis Manzanares Samaniego e Juana Del Carpio Delgado.[2] Segundo esta Autora, a criminalidade econômica é cometida por pessoas que, frequentemente, se movimentam com a máxima facilidade por territórios de diversos Estados, pois em geral são dirigentes de empresas de caráter multinacional. Deslocando-se para países diferentes dos quais cometem o ato ilícito, os acusados de infrações econômicas se evadem da ação da justiça criminal, aproveitando-se adequadamente de lacunas e diferenças sensíveis, quando não patentes omissões, perceptíveis nos sistemas legais das nações singulares afetadas.
Para Christophe Samper, haveria uma tradicional exclusão das infrações econômicas do âmbito extradicional. Isso porque, historicamente, o direito econômico encontrava-se estreitamente ligado ao sistema econômico estatal, ao passo que a extradição, por se constituir um atributo da soberania dos países, se antagonizava com as atividades antieconômicas. Contudo, com a liberalização econômica – em especial, pelo surgimento do Direito comunitário –, aquele caráter político-estatal das infrações econômicas se enfraqueceu, facilitando o atendimento de pedidos de extradição de criminosos econômicos. Em suma, para Samper, de uma relação de exclusão absoluta, passou-se a observar uma relação de exclusão relativa, relacionada com a previsão de penas mais brandas para os criminosos do colarinho branco, em geral em não aceita como fundamento de um pedido de entrega extradicional.
Por sua vez, refletindo sobre os crimes tributários, José Luis Manzanares Samaniego sustenta ser completamente defasada a antiga tese de que, em razão da sua complexidade, os delitos fiscais seriam sinônimos de (inextraditáveis) delitos políticos, que têm como vítima o Estado, não pessoas singulares. Não há nada que difira – a não ser, como dito, uma pena eventualmente mais branda –, o crime fiscal do crime comum.
É certo os crimes econômicos podem ter conformações em determinados ordenamentos jurídicos que inviabilizem a análise de eventual extradição. Por exemplo, em muitos países há a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sendo que, naturalmente, uma empresa não pode ser sujeito passivo em um processo de extradição. Em outros, há a presença de um direito administrativo sancionador para a criminalidade corporativa, não se admitindo, em sede extradicional, pena outra que não a de natureza criminal. O mesmo vale para eventual sancionamento com pena pecuniária, pois a extradição pressupõe pena privativa de liberdade com certa gravidade.
Em que pesem tais ressalvas, tem-se que, no geral, as peculiaridades de crimes como a sonegação fiscal não podem obstar a colaboração penal via deferimento de pedido de extradição. Nesse sentido, analisando um pedido de extradição por crime fiscal, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não há que falar na exigência da constituição definitiva do crédito tributário para a concessão da extradição, exigindo, tão-somente, a tipicidade em ambos os Estados para o reconhecimento do pedido. Não é necessário que o Estado requerente siga as mesmas regras fazendárias existentes no Brasil, conforme preconizado, entre nós, pela Súmula Vinculante n. 24 (STF. Ext. 1222. In http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4427151).
Em conclusão, há uma série de características que singularizam a extradição de delinquentes econômicos. Sobre o assunto, é preciso atentar para a evolução interpretativa dos institutos a ela relacionados, bem como o desenvolvimento de reflexões por parte de cientistas e dos profissionais do Direito Penal Econômico. Se se deve garantia o direito de defesa para acusados de crimes, independentemente de suas particularidades econômicas – até porque perseguições política podem, de fato, serem reais em um mundo de polarização de ideias e de acirradas disputas econômicas entre nações –, não menos certa é a assertiva no sentido de que não se deve aceitar, nos dias atuais, a tese do too big to extradited.
[1] Além de artigos, capítulos e organização de livros, palestras e outras atividades, publiquei os seguintes livros relacionados com extradição e cooperação penal: As novas tendências do direito extradicional (2ª ed.) e Presos estrangeiros no Brasil: aspectos jurídicos e criminológicos.
[2] MANZANARES SAMANIEGO, José Luis. La extradición por delitos fiscales. In La Ley, Madrid, 1986. SAMPER, Christophe. L’extradition des délinquants ecónomics. In Revue de Science Criminelle et de droit pénal comparé, n. 4, 1998. DEL CARPIO DELGADO, Juana. La extradición por delitos económicos. In Ciência Jurídica. Vol. 62, 1995.